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Vivi tudo de pensão. Como filho da dona, alguns anos, e depois fui hóspede comum, quando meus pais voltaram para Ipiaú. Em dois anos morei nuns cinco ou seis pensionatos, até descobrir que todos são iguais.
Minha mãe Cleonice teve duas pensões. A primeira foi no casarão 239 da Avenida Sete de Setembro. Fui estudar numa escolinha do Forte São Pedro e depois fui para a escola da professora Estela Fróes, no Largo dos Aflitos, onde depois do recreio havia “um minuto de silêncio” antes da próxima aula: todo mundo sentado tinha que abaixar o rosto entre os braços sobre a carteira e ficar assim um minuto.
O depois famoso pintor Raimundo de Oliveira foi hóspede do 239. Sempre de pouca conversa, disse um dia a minha mãe: “Dona Cleonice, essa parede da sala está muito vazia, vou pintar um quadro para a senhora colocar aí”. E pintou uma tela enorme que tomou toda a ampla sala de visitas do casarão. Quem passava pelo passeio do 239 parava para admirar da rua o quadro, um Cristo crucificado com as pessoas ao pé da cruz.
Anos depois, quando mudamos para a Rua da Imperatriz, na Cidade Baixa, perto do Bonfim, minha mãe dobrou a imensa tela em quatro ou oito partes e guardou na cômoda. Não havia parede na casa que pudesse receber aquele quadro. Aí estourou a fama de Raimundo de Oliveira, morto em 1966, ano em que foi lançado o livro de xilogravuras “Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira”, em cujo prefácio Jorge Amado escreveu: “Esse pintor que passou a limpo a violência do Velho Testamento e o tornou de maciez de veludo”.
Decidimos, então, vender a tela, já danificada por causa das dobras. Procuramos o famoso restaurador Rescala, mas o valor da restauração era muito alto. Acabamos por vendê-lo a uma galeria de arte, que o revendeu por um valor 15 ou 20 vezes mais, conforme notícia publicada numa coluna social de jornal, que estampava a foto do valioso quadro.
A segunda pensão de meus pais foi na Rua Gabriel Soares, 33, Ladeira dos Aflitos. Teve um hóspede, um paulista, que num domingo perguntou a minha mãe como chegar a Itapuã. Ela informou onde pegar o ônibus na ida e onde saltar na volta: “O endereço daqui é Ladeira dos Aflitos, 33”. Isso era umas 11 horas. Deu 7 da noite e nada do paulista chegar. Só chegou às 19h30, bem cansado. “Eu já estava preocupada com o senhor”, disse minha mãe. O paulista, que tinha tomado algumas em Itapuã, perdeu o ponto de ônibus das Mercês e só foi parar na Praça da Sé. Nada de lembrar do nome da rua: “Dona Cleonice, eu só lembrava que a rua tinha alguma coisa de sofrimento e perguntava às pessoas onde ficava a Ladeira dos Desesperados, e ninguém sabia. Só quando lembrei que tinha perto um quartel da Polícia Militar foi que consegui chegar aqui”.
Meus pais retornaram a Ipiaú e fui peregrinar de pensão em pensão. Fui morar nos Barris, numa casa onde a gente só dormia; fazia refeição em outra casa próxima. Tive uma paquera com a filha do dono e meu prato vinha mais caprichado (“mas venha almoçar logo às 11 horas pra ninguém ver”). Mas ela era “muito volúvel”, como se dizia, e voltei à gororoba normal, quando tinha que pedir um ovo frito (o “zoiúdo”), pago à parte, para ficar “comível” (quando eu era filho da dona, a família quase sempre tinha uma comidinha melhor).
Cada um ia para o café da manhã com sua lata de leite Ninho, pois só saía café preto. Para não roubarem a lata, você não podia escrever seu nome no rótulo, pois a turma arrancava. Tinha que marcar na própria lata com tesoura ou canivete.
Morei também na Saúde. Eram três no quarto, um que foi um grande namorador. Quando tomava umas, ele abria uma grande lata de biscoitos cheia de fotos e cartas de ex-namoradas. “Essa aqui acabou o noivado por minha causa”. “Por causa dessa aqui tive que ir embora de Feira de Santana porque o marido dela queria me matar”. Lia algumas cartas (“Ah! Veja só o final dessa”), e depois chorava, a caixa de biscoito voltava para o guarda-roupa e ele ia dormir.
Aos sábados, a turma lá de cima tomava umas (dona Keké, dona da pensão, e algumas hóspedes moravam embaixo) e cantava: “É a pensão de dona Keké/ Embaixo é família/ Em cima é cabaré”.
“Vão dormir, meninos”, gritava a velha, embaixo da escada.
Nessa pensão tinha Sérgio, um bancário que acordava todo dia às 6h30, pelo despertador. No sábado ele botava o despertador também para 6h30 e quando o bicho tocava ele dizia: “Ah, seu sacana, hoje eu não vou, não”, dava uma banana pro despertador e botava para despertar às 7 horas. “Se fudeu, porque hoje eu não vou”. Ficava nessa luta com o despertador, aquele redondo das perninhas finas e duas sinetas em cima, até umas 9 horas, quando se levantava feliz e vingado.