O aumento do número de internações por covid-19 em Manaus, no Amazonas, de 552 em dezembro para 3.431 em janeiro, tem surpreendido e preocupado os cientistas.
Em texto publicado na revista científica The Lancet, em 27 de janeiro, um grupo de pesquisadores, com participação da USP, aponta que o novo surto pode estar ligado à nova variante do vírus, potencialmente mais transmissível, e à perda de anticorpos dos que foram infectados na primeira onda da doença, em abril do ano passado.
Os pesquisadores recomendam um aumento da vigilância sorológica e genômica para entender a dinâmica da nova linhagem do vírus, sua capacidade de reinfecção e o efeito das vacinas.
O texto apresenta quatro hipóteses não excludentes para o surto de covid-19 que começou em dezembro na cidade de Manaus.
A primeira é que a taxa de ataque, isto é, o número de pessoas infectadas, foi superestimada durante a primeira onda da doença, em abril do ano passado. “Esta é sempre uma possibilidade, porém pelo menos 50% das pessoas mostravam anticorpos em junho, e esse valor seria grande o suficiente para evitar uma segunda onda, mesmo que a taxa não tivesse chegado a 76% em outubro”, afirma a professora Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) e da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), primeira autora do texto. “Em geral, a prevalência nos doadores de sangue, em qualquer doença, é subestimada, pois pessoas com sintomas são excluídas da doação, o que pode ter influenciado na estimativa.”
A segunda hipótese é que houve uma possível diminuição da imunidade para o vírus em dezembro de 2020. “Pesquisas apontam que a infecção é rara em pessoas que apresentam anticorpos, mas esses estudos apenas seguiram as pessoas por seis meses”, aponta Ester. “Ou seja, os novos casos em Manaus ocorreram de sete a oito meses depois do pico, quando ainda não existiam dados claros quanto à reinfecção.”
O surgimento de uma nova linhagem do coronavírus, identificada em dezembro no Amazonas, é a terceira hipótese apontada pelo texto. “Desde dezembro, a variante do vírus vem sendo detectada em um número significativo de amostras de pacientes”, observa a professora.
“Essa nova linhagem provavelmente tem mais facilidade para escapar do sistema imune do corpo humano”
A última hipótese apontada pelos pesquisadores é que a nova linhagem possui uma taxa de transmissão maior do que a anterior. “Com isso o limiar de imunidade populacional para bloquear um novo surto é maior”, ressalta Ester.
“É necessário intensificar ações de pesquisa que forneçam respostas que orientem ações de combate à doença”.
Os pesquisadores indicam maior vigilância sorológica e genômica dos casos de covid-19, com atenção especial para ocorrências de reinfecção, inclusive pela nova linhagem. Também é sugerida uma investigação sobre a eficácia das vacinas contra o vírus e suas variantes, com a genotipagem de pessoas não vacinadas.
O texto foi elaborado por pesquisadores do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), que têm divulgado mensalmente dados de pesquisas com doadores de sangue em Manaus, incluindo informações genéticas, através de plataformas de acesso aberto.
O texto Resurgence of Covid-19 in Manaus, Brazil, despite high seroprevalence, foi publicado no site da revista científica The Lancet em 27 de janeiro.
Variante tem mais potencial de transmissão e reinfecção
Uma nova linhagem do coronavírus foi identificada na cidade de Manaus, no Amazonas, em dezembro. A variante, que tem um conjunto de mutações genéticas com potencial de aumentar a transmissão e reinfecção pelo vírus, estava presente em 42% dos pacientes infectados testados na cidade.
A nova linhagem também foi detectada no Japão, sugerindo que a variante do vírus teria sido levada por viajantes vindos do Amazonas. A descoberta é resultado de um estudo feito por pesquisadores do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (grupo Cadde), que conta com a participação do Instituto de Medicina Tropical (IMT) e da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
“A nova linhagem, denominada P.1, foi identificada em 13 das 31 das amostras positivas para o teste de RT-PCR coletadas entre 15 e 23 de dezembro de 2020, ou seja, em 42% dos pacientes testados”, relata Ingra Morales Claro, pesquisadora do IMT e da FMUSP, uma das autoras do artigo. “A variante, porém, estava ausente em 26 amostras de vigilância do genoma disponíveis publicamente e coletadas em Manaus entre março a novembro de 2020.”
O que diferencia a variante da linhagem já conhecida é um conjunto de mutações genéticas, explica a pesquisadora. “Mutações do vírus são frequentemente identificadas e novas variantes surgem regularmente. Sabemos que o sars-cov-2 tem uma média de duas a três mutações por mês. Portanto desde o primeiro caso identificado em Wuhan, na China, no final de 2019, o genoma do vírus apresenta-se diferente após quase um ano dessa identificação”, relata. “A nova linhagem, descendente da linhagem B.1.1.28, contém uma composição única de mutações definidoras de linhagem, incluindo várias mutações de importância biológica conhecida, como E484K, K417T e N501Y.”
Transmissão local
De acordo com Ingra, a descoberta da variante indica transmissão local do vírus e aumento recente da frequência da nova linhagem. “Manaus foi severamente atingida pela pandemia covid-19, com uma taxa de ataque, ou seja, um número de pessoas infectadas pelo vírus sars-cov-2 estimado em três quartos da população em outubro de 2020, como mostrado em estudo publicado recentemente” observa. “Apesar disso, vem sendo observado um rápido aumento nos casos em locais onde as taxas de ataque anteriores já tinham sido estimadas. Portanto, é essencial investigar rapidamente se há um aumento na taxa de reinfecção em pessoas previamente expostas.”
A nova linhagem foi detectada e reportada por pesquisadores do Japão em dois adultos e duas crianças que chegaram ao país asiático, provenientes do Brasil, do Estado do Amazonas. “A partir do estudo filogenético contendo sequências e dados de amostragem anteriores a linhagem P.1. em Manaus, nosso trabalho corrobora as informações de viagem dos casos recentemente detectados no Japão”, aponta a pesquisadora, “sugerindo que a direção da viagem era de Manaus para o Japão”.
Segundo o estudo, a nova linhagem pode elevar os riscos de aumento da transmissibilidade e de reinfecção pelo coronavírus. “Uma das mutações genéticas presente na variante, a E484K, ocorre no domínio de ligação ao receptor (RBD), local que o vírus usa para se ligar ao receptor ACE2 nas células humanas, e que foi associado ao escape de anticorpos neutralizantes”, ressalta Ingra. “O recente surgimento de variantes com múltiplas mutações compartilhadas no pico aumenta a preocupação sobre a evolução convergente para um novo fenótipo do vírus, potencialmente associado a um aumento na transmissibilidade ou propensão para reinfecção de indivíduos.”