Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 19 (ou 19ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra e Piti chegaram aqui discutindo, por causa de uma decisão anunciada por um coligado colaborador do chefinho do sanatório.

Estranhei, porque essas duas só discordam de mim, né? Nunca uma da outra...

Lembram daquele pedido extraoficial de acesso a cadastros médicos sigilosos que eu registrei aqui no diário, na 16ª semana de confinamento?

Então... parece que a cúpula do escritório central não conseguiu todas as informações que queria, ou conseguiu mais do que desejava, sei lá eu, e decidiu “corrigir os rumos” do sistema.

Pra isso, quer implantar “outro modelo” de coleta e compartilhamento de dados sobre a situação criminal mental dos internos.

Minha vizinha acha que o propósito é destituir o modelo vigente, pra ele não acabar expondo a família do chefinho, os amigos do chefinho, os amigos dos amigos do chefinho...

Pra Sandra, a questão é mais ampla: tinham descoberto que o sistema era mais embaixo, e não ia deixar escapar um político interno do sanatório...

Rusgaram, rusgaram, aí se deram conta da minha presença e perguntaram o que eu achava.

— Acho que como já lascaram com quem queriam, o modelo não serve mais... Aras! Ora!

Falei sem pensar, mas como não tomei nenhuma bordoada, saquei que elas tinham gostado do que eu tinha dito, e corri pra tomar meus anti-insurreissivos calmantes!

Eu, hein? Tenho um medo de ficar igual a elas de novo...

***

Terça-feira. Dessa vez foi Piti que me deu um livro pra ler — uma peça de teatro, de Clóvis Levi e Tânia Pacheco.

Os protagonistas são uma professora, que usa o ensino como instrumento de poder a serviço dos interesses do Estado, e um aluno-fantoche, cujos pais são transformados em bonecos.

A história, escrita nos duros anos da ditadura militar, é na verdade uma metáfora pra denunciar a opressão, o autoritarismo...

Então, tive que me concentrar, pra entender os ditos não ditos — o que tava um pouco difícil, por causa do barulho do lado de fora, com vozes replicando homofobias, racismos, machismos...

Eu procurei ficar de boa, porque todo mundo tem direito a se expressar, né?

Mas daí vi nuvens carregadas no céu, abri a janela e preveni:

— Cuidado! Se chover, vocês estragam-se! Todos!

***

Quarta-feira. Minha irmã veio informar que uma nuvem gigante de insetos estava preocupando a comunidade intersanatorial.

Sempre fico alarmada quando ela avisa que tem novidades — mas não era o caso do bando de gafanhotos, né?

Daí ela explicou que a praga da vez são formigas voadoras planando sobre o sanatório europeu!

Pra completar, contou que uma amiga dela, uma tal de Brandão, tinha garantido que a Terra tem uma dimensão subterrânea, habitada por seres imundos, contra os quais os bichos estariam se rebelando.

Como toda guerra tem ataque e contra-ataque, e cada batalha é uma batalha, fiquei preocupada com que tipo de invertebrado o submundo do sanatório nacional reagiria!

Fiquei imaginando uma nuvem de baratas gigantes voejando sobre nossas cabeças, e Sandra, em vez de me tranquilizar, me preocupou mais.

Disse que na verdade os habitantes da esgotosfera tupiniquim estavam agindo desde outubro de 2018!

Só que estavam atacando com insetos digitais, que formavam nuvens de mentiras, insultos, ameaças, calúnias, difamações, destruindo impunemente honras, reputações, vidas.

Tive que concordar com ela plenamente!

Ou seria planamente?

Agora fiquei em dúvida...

***

Quinta-feira. Vocês já perceberam que não tenho o melhor dos humores de manhã cedo, né?

E hoje acordei tão azeda, que falei pra Piti que era melhor ela não aparecer por aqui, porque eu não tava com a menor disposição pra conversa.

Mas é claro que ela veio, tipo minutos depois de eu ter ligado, ou desligado, sei lá eu, porque adora uma picuinha!

Chegou com um papo chatinho sobre o Spotify ter identificado uma mudança de preferência dos usuários, que durante a pandemia estariam optando por repertórios mais relaxantes...

Por coincidência, eu tava ouvindo o Spotify.

Gosto desse treco, porque não tenho saco de ficar catando música, e ele executa listas de canções de acordo com o gosto de cada pessoa.

Mas uma coisa é usar a tecnologia; outra, é discutir tese sobre vigilância digital, diluição de fronteiras entre mundo real e mundo virtual e outras paranoias pós-modernas às 5 da matina!

Ainda mais que tava tocando uma música de Caetano que eu adoro! Daí que fiz de conta que ela não tava aqui, aumentei o volume do celular e comecei a cantar.

— Me larga, não enche

— Me deixa cantar, me deixa cantar...

Quando dei por mim, ela tinha batido a porta e eu tava com um ovo quebrado na cabeça.

Na moral, podia ter Spotify de gente também...

Daí ele editava listas de humanos que estivessem de acordo com nossas preferências!

É ou não é?

***

Sexta-feira. Tava aqui de boa, faxinando e ouvindo música, quando minha irmã entrou no quarto dando piti... quer dizer... dando uma de Piti.

— Tá cancelada!

Eu nem sabia que a gente tinha programado algo, que dirá que esse algo ia ser cancelado...

Mas Sandra disse que o que ela ia cancelar era... eu!

Entrei em pânico, porque lembrei do papo de ontem sobre a extinção de fronteiras, e vi que ela tava ultrapassando os limites entre evento e gente, pessoa e coisa!

Então, antes que ela me eliminasse, silenciasse, invalidasse, riscasse do mapa ou sei lá mais o que, achando que tava deletando um software, ou cancelando uma reunião, corri pro quarto de Piti.

Ela foi atrás, lógico, mas eu cheguei primeiro, a tempo de minha vizinha explicar que cancelar é um verbo novo pra um velho normal, de banir a pessoa de sua vida, por uma razão qualquer —plausível ou não.

Perguntei qual era a razão do dia, e as duas começaram a falar ao mesmo tempo, dizendo que era porque-uma-tinha-postado-que-eu-tinha-postado-que-a-outra-tinha-postado...

Quando vi que o cancelamento podia virar linchamento, me piquei pro meu quarto, tranquei a porta e saí desligando ipad, notebook, tablet, celular...

Vai que elas sabem como invadir as tais fronteiras!

Né?

***

Sábado. Outra noite insone, com a mente dando reload de imagens do tempo das aglomerações permitidas, dos abraços presenciais, da infância, das brincadeiras...

Lembram de “morto-vivo”?  Quem não jogou, não sabe o que perdeu...

Tinha regras simples, mas era muito divertido: quando o líder do grupo gritava a palavra “morto!”, os demais tinham que se agachar imediatamente; quando gritava “vivo!”, todos tinham que pular e ficar de pé.

A graça era a velocidade dos comandos e da reação dos participantes, que se confundiam e erravam, ficando de pé ao ouvirem a palavra “morto” e vice-versa.

Então... depois do café, fui ver TV e acabei cochilando. Quando despertei, dei com Sandra e Piti jogando “morto-vivo”.

Estranhei um pouco, porque as regras estavam diferentes... em vez de dar os comandos “vivo” e “morto”, uma ia demandando nomes e a outra respondendo:

— Morto!

— Morto!

— Morto!

Só me dei conta de que a parada era outra porque não ouvi o comando “vivo”. E eu já tinha contado 93 mil nomes...

Não era o jogo do “morto-vivo”. Era jogo de vida e morte.

Fiquei tão deprimida que desliguei as duas...

Porque não tem quem aguente, né?

***

Domingo. Acordei pensando nos acontecimentos da semana. As intrigas políticas do sanatório; as pragas; nossas pequenas intolerâncias; os dilemas pós-modernos; o giro do mortômetro...

E passei o dia na base do tbt, lembrando do tempo que eu, minha irmã e minha vizinha compartilhávamos os mesmos tédios e euforias; esperanças e desalentos; algazarras e silêncios.

Éramos unas. Tínhamos dúvidas, mas não dissonâncias: o fascismo era história morta e o humanismo, o caminho para um futuro possível.

— Ando tão à flor da pele, que qualquer beijo de novela me faz chorar...

No quarto ao lado, Piti cantava Zeca Baleiro.

Liguei pra ela e pra Sandra, contei de minhas saudades, pedi pra virem dormir comigo.

Conversamos, rimos, choramos e adormecemos abraçadas.

Madrugada alta, um clarão rompeu a vidraça da janela, projetando na parede uma sombra que reconheci de pronto: era o espectro de minha lucidez.

Tateei à procura de minhas partes parceiras, mas percebi que estava só.

(porque hoje é domingo...)