É Roberto Piva: "Só acredito em poeta experimental com vida experimental". É Bubowski: "É tão fácil ser poeta, e tão difícil ser homem.” É João Cabral de Melo Neto: "A vida não se resolve com palavras". É Tom Waits, de joelhos, aceitando sua impotência perante o álcool e pedindo ajuda nos Alcoólicos Anônimos, abdicando de toda arrogância, vaidade.
Desmistificando os alteradores de consciência como elementos fundamentais e essenciais para a criação artistica - o clichê do artista drogado e bêbado. Waits continua produzindo como nunca, sem beber, mas com a mesma cara de bêbado doidão. Se fosse simples assim, todo guitarrista consumidor de heroína seria um Jimi Hendrix, né? E todo bebum que tem uma conta no Facebook ou um blog: um Bubowski. Admitir fraqueza é força, é assumir nossa condição humana. É hombridade! Não acredito em receitas para viver. Cada um sabe onde o seu calo aperta. Acredito no direito de se fazer o que der na telha com o próprio corpo sem que isso seja condenável ao olhar alheio. O que é veneno para alguns pode ser antídoto para outros!
Entretanto, quando um amigo sangra no asfalto como um cão atropelado, ou quando minha filha está ardendo em febre: o mais visceral e pungente poema que eu possa escrever naquele momento não vale uma mão estendida. O que se quer dizer com o que se diz? As palavras podem ser verdadeiras camisas de força, podem trair, podem nos esconder. As cartas comoventes de Dostoiévski ao irmão Mikhail Mikhailovitch são verdadeiras confissões, como se o mundo fosse acabar e ele tivesse que se libertar de algo. Ali não está apenas o escritor com o coração sangrando, o romancista que se preocupa e desenha com maestria todas as dores e misérias e belezas do nosso mundo, mas também alguém com vaidades e muitos medos, que queria vestir as botas da moda, beber dos chás mais caros e receber mesadas - tudo às custas do suor do rosto do pai -, e que chora nas linhas escritas como uma criança desprotegida.
Chega o momento em que sinto que nada mais precisa ser ocultado, disfarçado, perfumado ou deturpado por palavras bonitas ou eloquentes; e muito menos por palavras vulgares e atitudes vis. O mundo já é um lugar mesquinho demais. Estar em outro lugar me parece impossível, pois meu coração nunca ficará longe daqui. Tão claro quanto respirar, quanto estar triste diante do mundo que vejo. Trago na carne o que aprendi nos abismos mais tenebrosos.
Em meio a tanto ceticismo, a tanta gente idolatrando a própria sombra: confio no amor mais do que antes. Eis o grande paradoxo. E existe um motivo, um motivo para voltar... Minhas filhas, minha companheira, meus amigos, os depoimentos comoventes e repletos de sabedoria do senhor Toninho. Enquanto vejo as imagens do nosso planeta, em perspectiva, lá de cima, tenho vontade de criar raizes. De pousar. Eu me machuquei, eu me curei, eu me ferrei neste mundo e nunca encontrarei palavras para descrever adequadamente ou de forma fiel o que é a abstinência do vício da cocaína, ou a dor que senti quando quebrei minha segunda vértebra da lombar - e não conseguia andar e muito menos respirar -, e ninguém sabe explicar ou definir cientificamente como sobrevivi. Como o meu primeiro beijo. "A melhor definição de amor não vale um beijo" (Machado de Assis).
Mas tudo ficou para trás agora que me preparo para pousar, já estou pronto para pousar de vez. "Meu dente está mole, papai" - diz minha filha. "Você já perdeu todos os dentes uma vez, né papai?". "Acontece com todo mundo. Só queria que não doesse muito". E me abraça como se eu fosse um porto seguro, um protetor, um pai. Justo eu, que bebeu das poças mais lamacentas deste mundo, tenho que ser fonte, água limpa, e me sinto estranhamente purificado e digno.
Este amor não tem limites. E é ele que vem me salvando do horror que é fazer parte deste mundo. Tentar traduzir o que sinto é fracassar. Fernando Pessoa precisou escapar de si através de mais de 150 heterônimos, e nunca chegou a concluir "O Livro do Desassossego", o livro de sua vida, um livro cheio de frases incompletas, de sensações interrompidas, intraduziveis, e, portanto, perfeito em sua imperfeição. "O coração, se pudesse pensar, pararia". E se Rimbaud fez uma fogueira com os seus escritos e pediu absolvição, quem sou eu para (me) definir?