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Vontade era de não escrever nada. Vontade era de tomar um troço bem pesado que me fizesse dormir por uns dois anos. Vontade era de passar uma temporada fumando ópio na companhia de prostitutas asiáticas. Vontade era de escrever o psiu, o silêncio. Mas o silêncio não se escreve e muito menos se lê. Vontade era de chamar os deuses na chincha e berrar no ouvido de todos eles: "Meus chapas, por quê tudo isso?!"
Sim, romancista russo, homem que carrega as dores do mundo: você sabe o que eu sinto? Sinto minha insignificância, o lugar que ocupo é tão minúsculo em comparação com o resto do espaço em que não estou e onde não se importam comigo. A parcela de tempo que viverei é tão ridícula em comparação com a eternidade, onde nunca estive e nunca estarei.
Que estupidez! Que inutilidade! - isso; latir, latir e babar, como Bazárov sobre a esterilidade da vontade de viver ("Pais e Filhos", de Ivan Turguêniev). É que eu tô sem tempo para ficar sem vontade de viver! Faço minha reverência à Calíope, a mais velha e sábia das musas gregas, que é considerada a rainha destas, mãe de Orpheu e das sereias. A rainha está muda. E eu sem tempo para medir a profundidade do poço que cavei com as minhas próprias mãos. É que para além de minha vã filosofia, a vida tem urgência. Minhas filhas precisam comer, precisam de alegria, minha companheira está com dor de cabeça, agora. O bem tem urgência porque o mal vem enchendo o mundo de porrada e de ódio; o mal tem goleado, é 7 × 1 toda vez.
Então, quando minha filha Dodó (4 anos) sente dificuldade para respirar, tenho que fazer alguma coisa, mesmo estando eu mesmo com falta de ar. A outra filha precisa de ajuda para se limpar, é madrugada, estou dormindo, mas vou. Vou cambaleando! Combinei de ajudar na lição de casa e cumpro o que prometi; minhas filhas acreditam em mim, precisam de mim, confiam em mim. Elas não sabem ainda o que fazem os politicos, os empreiteiros, os corruptos.
Dodó me vê lavando a louça e pergunta se pode me ajudar. Ela pega um banquinho, sobe, e fica do meu lado, observando. Sinto a água gelada em minhas mãos, diminuo o ritmo até quase parar.
Quem não gostaria de congelar os bons momentos da vida? Colocar em letras garrafais e em destaque apenas o que nos interessa e nos orgulha nos veios disformes das mãos do destino? Mas o Zepelim Gigante chega destruindo sem compaixão os nossos sonhos mais mesquinhos - como nas canções -, e nem Geni poderá nos salvar.
Paro de pensar, mergulho nos olhos de minha filha caçula; eles brilham como estrelas! Parecem bolas de gude. Ela me mostra uma bolha de sabão que cai sobre o meu rosto, e ri. Estou rindo também.
Não sei como cheguei até aqui, tudo passou tão rápido, não entendo nada do que está acontecendo lá fora; é um filme de terror que parece que vai acabar antes do fim. Olho em outra direção, e ainda assim não me sinto digno diante de tamanha beleza e inocência de 4 anos.
Aceito minha cruz, minha completa miséria - estou de joelhos por dentro; confundo preces e orações, tento falar com Deus, tem boi na linha, ninguém responde - mas agradeço o silêncio. Mantenho minha cara na direção do beijo e também do soco. E a prisão do apartamento, ou de um mundo fim de feira, torna-se vida intensa e cheia de vôos rasantes, repleto de beleza e de esperança, nas pequenas pegadas de duas crianças.
Existem pássaros livres que vivem presos em gaiolas. Mas não se enganem. É só dar uma brecha que eles escapam e somem no céu. O resto é psiu.