Cassiano Antico

Quando o mundo inteiro passa a ser o interior de nossa casa

Como posso querer ir para outro lugar?

casa
Foto: pxhere/Creative Commons

 
O amor não tem cura mas é o único remédio para todas as doenças
-- Leonard Cohen

Creio hoje mais do que nunca é preciso valorizar todos os momentos de nossa existência, seja sentindo os pés descalços no chão frio, seja ouvindo até o fim a mensagem de um amigo, seja sentindo o café quente queimar a língua.

Procurar pedaços, lascas, tudo quanto contenha o minério humano, tudo quanto seja capaz de ressuscitar o corpo e a alma. Porque mesmo no pior cenário, a vida continua, a Terra continua girando, as flores continuam nascendo, as aulas das minhas filhas voltaram (em casa e pelo computador), meus livros ainda não terminaram, meu coração está socando o meu peito, agora.

Sinto orgulho de expor a imagem que vejo exposta no gigantesco espelho da humanidade; reparo não apenas em seus contornos exuberantes e sublimes, mas também em seus traços trágicos, sórdidos e deformados. O lado cruel, que rouba no jogo, que manipula resultados, que suja a água mais limpa e pura: que vende a alma pro diabo.Traços estes que ainda não existem na alma das crianças. No olhar de uma criança sente-se a presença de Deus. E é lá que eu quero estar.

Claro que tem sido um desafio encarar a atual  chuva de meteoros que cai sobre o nosso planeta. Trabalhamos de casa, nos exercitamos em casa. Aposto corrida com minhas filhas pelo apartamento. Temos um circuito para as corridas de bicicleta e outro para as corridas de patinete; e outro para a brincadeira do lobo mau.

Durante o dia, elas fazem apresentações dos personagens que lemos juntos antes de dormir. "O Patinho Feio", "Os Três Porquinhos", "Ladybug", "Moana".

Fizeram uma livraria com os nossos livros, a biografia de Dostoiévski custava 6 reais. Todos nós compramos algum livro, que não precisou ser pago com as moedas do porquinho, com o dinheiro desse mundo, mas com algum brinquedo, abraço ou briquedo quebrado inclusive - e era só pegar o livro e dizer o motivo da escolha do autor.

Temos muitas exposições de desenhos também; poduzidos nos mais variados materiais, pinturas em caixas de ovos, papelão, folhas. E tudo tem hora para começar e para terminar. Cada um tem o seu lugar no palco e na plateia, e depois trocamos de lugar, no palco e na platéia. As aulas voltaram, como disse, e é tudo pelo computador. Aulas de inglês, matemática, português, tarefa de casa. Vejo o esforço das professoras, vejo todo mundo tentando.

Enquanto Ju acompanha uma filha, eu auxilio a outra. E, depois de alguns dias, Dodó e Zazá já aprenderam a manipular o objeto (computador) melhor que a gente, e, praticamente vão para a "escola" sozinhas.

Dodó, às vezes, me acorda com uma espada na cintura e uma coroa dourada na cabeça com a voz mais doce do mundo: "papai, já e dia, você comeu todo o pudim de madrugada, brinca comingo?".

Não vivo pensando no meu passado, não tenho tanto tempo assim. Claro que, muitas vezes, me pego com lágrimas nos olhos quando reparo no mundo que criamos: falso, dissimulado, ladrão, podre, cruel, hipócrita, o mundo do "number one". Escorrego na poça suja e cheia de cacos de vidro da miséria humana. Aí, levanto meu corpo machucado, engulo a dor, e vou secar minhas filhas depois do banho (elas riem quando seco seus dedos dos pés); vou faxinar a casa; vou ajudar minhas meninas a fazer lição de casa; curto ser a platéia dessas pequenas e lindas criaturas; ouço depoimentos comoventes de outros pais.

E das crianças só posso dizer que elas irradiam felicidade, ternura, dançam, cantam, compõem, como Valentina (6 anos): "Família é a melhor coisa que pode acontecer / Brincar e se divertir / Seu pai sua mãe vão te dar amor e te proteger / E além dos laços sanguíneos, muitas famílias você pode ter / Muitos amigas e amigos para brincar  / Só depende do tamanho do coração que você criar".  

Como posso querer ir para outro lugar, seja um futuro que ainda não aconteceu ou um passado que já passou, ao ouvir coisa assim?