Cassiano Antico

Meu irmão Diego (que guardou as dores dele para cuidar da alheia)

Diego é um dos melhores amigos que essa vida me deu


Imagem: pxhere/Creative Commons

 
Quem é que quer flores depois de morto? Ninguém.
-- J.D.Salinger / "The Catcher in the Rye"

Meu irmão caçula (Diego) foi pai recentemente, e, por causa do confinamento, não pude visitar meu sobrinho. Minhas filhas não puderam conhecer o primo. Vejo as fotos, vejo a alegria, admiro a vida nas imagens.

Além dos laços sangüíneos, Diego é um dos melhores amigos que essa vida me deu. Quando ele nasceu, eu tinha cinco anos, e pedia pra mãe deixá-lo morar comigo quando eu me casasse. A mãe ria e dizia que ia pensar no assunto.

Estou casado há mais de 7 anos e tenho duas filhas que me trazem para esta coluna toda semana. Diego é padrinho da minha filha Valentina. E consegui que viesse morar comigo por alguns anos no período que ele fazia residência médica em ortopedia e especialização em joelho aqui em São Paulo.

Grande amigo, pra qualquer situação (ruim ou boa ou indecifrável), treta, risada, emboscada, hospital ou diversão. Até o fim da última madrugada. Tá lá o Diego. Na hora, preciso como um relógio suíço. O amigo que toma vinho tinto ao som dos Stones na sala comigo. O Cara que gosto de escutar, que gosto de ver sorrindo, gargalhando. O Truta que tenho coragem de pedir uma opinião, de contar uma cagada, de fazer uma confissão, aquela ferpa que tá me rasgando a garganta, saca? Ou uma goma de veneno que estou mascando de bobeira, sem necessidade?

Depois de bater um papo com ele, jogo fora na hora. Porque confiamos um no outro. Porque sei que ele não vai ser leviano comigo. Nem eu com ele. 

Arruma tempo pra tudo. Até pra trazer um remédio de última hora, depois de um dia com sua agenda alucinada - cirurgias e trocentos atendimentos e ainda sendo voluntário para tratar pessoas com a Covid-19. Tempo para ser bom no que faz, porque gosta, tipo ortopedia, cirurgias, artes marciais. Judô ou jiu-jitsu (o cara é fera nas duas categorias e medalhista mundial).

Parece até que as 24 horas do Cara são maiores do que a nossa, que a minha, pelo menos. Talvez a vida só tenha valor na doação e o amor só exista nas ações e não no jogo sarcástico e cínico e pedante e pomposo das palavras.

Não estou, de forma alguma, diminuindo o valor inestimável e transcendente das artes: seja escrita, pintada, desenhada, filmada, dançada, pulada, sagrada. Até porque é onde eu vivo. Mas a hora é de exaltar quem está arriscando suas vidas por todos nós.

Quem comunica às famílias que um ente querido morreu ou sobreviveu? Serei eu que no último texto falei até sobre o "Mito da Caverna"? Quem entrou sem boia no tsunami assassino? Quem tem que fazer roleta russa diariamente para que "tudo volte ao normal" e os ambiciosos ganhem dinheiro? Quem pulou no dente do dragão para resgatar vidas? Quem está arriscando a própria pele e a dos filhos deliberadamente? Quem são os Kamikazes nessa guerra pela vida? Quem são os sem nome que morreram para nos salvar e não receberam nenhum "obrigado"?

Médicos, enfermeiras, profissionais da saúde! E quando penso no meu irmão, escuto um sussurro: "Um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui" (Caio Fernando Abreu).

Ele arrisca sua vida todo dia. Arrisca a vida do filho recém-nascido. Arrisca a vida da esposa. E veio até mim, hoje. Como veio ontem. Como virá amanhã: se a gente precisar dele. Como irá para alguém. E não haverá nenhuma publicação disso. Nenhuma fotinho no Instagram. Nada. Ele fará calado.

Diego entendeu alguma coisa de algum segredo. Quem dá, sempre fica com a melhor parte. E também penso nos amigos que têm feito parte de minha vida neste momento. Nas trocas diárias pelo WhatsApp, no apoio, nos que ouvem as almas mutiladas, sem interromper, porque são também de carne e osso e coração. Nos que fazem sem nada pedir em troca. Nos que estão em extinção.

De minha parte, continuo sempre a buscar os anjos, mas também me permito fazer uma avaliação honesta do lado escuro de minha alma – e isso é motivo de alívio e de orgulho.

Num momento tão triste em que vivemos, não proclamo apenas orações, mas sinto o dever da penitência, em mim mesmo e em tudo à minha volta, nos corações amargurados e nos espíritos sombrios de um mundo em pedaços. Mas ainda assim, um mundo onde caminha silenciosamente e anonimamente Diegos e não apenas jalecos e números.