Cassiano Antico

O que nos espera do lado de fora da caverna onde nos enfiamos

Penso no "Mito da Caverna", livro 7, contido na obra "A República", de Platão


Foto: pxhere/Creative Commons

 
E eu quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne de vocês
-- Belchior

Estamos (Dodó e eu) espremidos debaixo da mesa, numa caverna improvisada. Há pouco eu era o lobo. Agora sou o protetor da princesa. Em pouco tempo serei outra coisa; um bicho sem nome, um pássaro ou um céu.Tenho uma missão que ainda não me foi revelada. Penso nos acorrentados desde a infância. Penso no mito. Penso no "Mito da Caverna", livro 7, contido na obra "A República", de Platão. 

As imagens  dos agrilhoados desde a "inocência" me sufocam; eles somente podem ver na parede suja:  sombras formadas por uma fogueira num fosso anterior. Pessoas passam com estatuetas e fazem gestos na chama para projetar as sombras na parede frontal, e eles pensam que toda a realidade são aqueles borrões, pois o seu restrito mundo resume-se àquelas experiências e nada mais.

O terraplanismo, a vacina que é contra as leis de Deus, Jesus e os micos amestrados da goiabeira, Leonardo Dicaprio tascando fogo na Amazônia, Queiroz da rachadinha e o "honesto de Taubaté", o sujeito com histórico de atleta e os milicianos, o Rock que é coisa do diabo, a masturbação que causa pêlos nas mãos, o torturador Ustra na cabeceira da cama, a ignorância como regra de vida, a claustrofobia como oxigênio. E eles gritam: "viva o mito, o mito. A Covid-19 é invenção do chinês. É só uma gripezinha! E daí?"

Um dia, um dos prisioneiros escapa dos grilhões e começa a explorar o interior da caverna, descobrindo que as sombras que ele sempre via eram, na verdade, controladas por pessoas atrás da fogueira. Tinha até um filósofo pangaré, cujo nome era algo como Orlavo de Carolho, que nutria as imagens. O homem livre sai da caverna e encontra uma realidade muito mais ampla e complexa do que a que ele julgava enxergar quando ainda estava preso com o bando que mais parecia uma gigante onda havaiana de espuma de ódio. Tudo embaça. Ele não vê Glauco, Platão, Sócrates e nem Jesus da goiabeira. É se vê ali. Sozinho.

Do nada, uma criança aparece e mostra a ele o interior da caverna. Ele sente medo. Ele vê as marionetes e as sombras na parede e o mundo fake sendo projetado e as bocas abertas e as babas de ódio e todo o sofrimento do mundo e o filósofo pangaré Orlavo de Carolho, com a língua roxa, falando palavrões aos borbotões. A bandeira do Brasil está sendo queimada. O país está em chamas. E os gritos: "viva o mito, o mito! A Covid-19 é invenção do chinês. É só uma gripezinha! E daí?"

E as pessoas morrendo. E as pessoas elogiando e banalizando a morte. Ele sente repulsa e medo, como se estivesse nu diante dos carrascos da Santa Inquisição. Um senhor bondoso e lúcido se mata bem na sua frente. Ele lê seu testemunho e segura com carinho e dor o seu coração arrancado por mãos covardes. Cai de joelhos. Não sabe o que fazer. Aperta a carta contra o peito, chora. 

Outra realidade, ainda mais ampla, está debaixo da mesa do apartamento, agora, bem do meu lado. É minha filha que acabou de completar 4 anos de vida, cachos dourados nos cabelos e um sorriso capaz de salvar o mundo. 

 
Cuidem das crianças de hoje
-- Flávio Migliaccio, maio de 2020