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Ninguém gosta de falar sobre isso. Sobre a morte. Mas a morte faz parte da nossa existência e é, provavelmente, nossa única e verdadeira certeza. Mais certa que as previsões tão imprecisas do tempo ou do dolar ou do melhor augúrio de Nostradamus ou da cartomante na tevê. Mesmo assim, fugimos da dita cuja como o diabo da cruz.
A vida e a morte se ligam de maneira frágil e graciosa como um Ioiô nas mãos de uma criança. Não poderia existir a vida sem a morte.
Não poderia existir uma única árvore sem a morte. Acho curioso como não dedicamos tempo para, de fato, aproveitar nossos dias de existência sendo solidários! Mesmo os dias de confinamento, de dor, de tristeza, apreciando a pureza das crianças, ou até mesmo mergulhados na falta de esperança que é onde encontramos sentido para todas as coisas que não têm. Só de podermos beber algumas gotas de luz de sol por entre os prédios já é um verdadeiro privilégio.
Respirar, constatar o próprio corpo vivo é estar no lucro. Estamos sempre disponíveis para passar horas vendo tevê; para nos aterrorizar com as atualizações da pandemia; para roer as unhas diante das milhares de valas abertas que aguardam os corpos humanos banalizados pelos nossos líderes; para nos chocar com as manobras cruéis e corruptas dos nossos governantes; para curtir o gatinho da celebridade no Instagram; para viver de maneira frenética os movimentos de um big brother ou a página do Facebook, abrindo links e mais links inúteis.
Mas nos falta tempo para os nossos, para os nossos filhos, para os nossos amigos, para nós. Ou, ainda, perdemos nosso precioso tempo alheios à vida, e ficamos deitados num "tapete esplêndido", mergulhados em fofocas. Defendendo esta ou aquela figura que nem sabe que existimos, e não damos a mínima a quem nos ama genuinamente.
Penso naquelas pessoas que morreram de maneira trágica – no adolescente que teve a juventude interrompida pelo câncer, nos milhares ceifados pela Covid-19 e por tantas outras efermidades, na talentosa dançarina que faleceu em um acidente de carro, no vizinho que morreu sem saber o que é o beijo de uma garota, no meu amigo amassado por um caminhão – e o quanto eles seriam gratos por apenas um dia a mais de vida numa quarentena triste, numa noite sem estrelas, numa tempestade de verão, ou apenas ouvindo pela última vez o riff da guitarra de um Keith Richards. Será que não devo isso a eles e assim fazer mais pelo simples fato de estar vivo?
Por isso, quando balanço minhas filhas no centro da sala, quando reparo nos seus traços tão delicados e quase escuto o silêncio, quando as ouço com toda a atenção do mundo, quando as coloco sobre meus ombros para que enxerguem mais longe que eu, quanto sinto o perfume da inocência: me entrego como quem vai partir, como quem vai morrer. Porque eu vou. Todos nós vamos.
É possivel ler nos livros de história... Os romanos da Antiguidade tinham um hábito bastante peculiar: todas as vezes que um general voltava vitorioso de uma batalha, ele entrava na cidade de Roma, e tinha que deixar o exército do lado de fora, num grande campo aberto, que era chamado de Campo de Marte – dedicado ao deus da guerra.
O general subia numa biga (carro romano de duas ou quatro rodas puxado por cavalos). O líder se apoiava na lateral da biga para ser aclamado pelo povo. O general ia em direção ao senado e, por lei, um escravo acompanhava a biga a pé. Esse escravo tinha uma função: a cada quinhentas jardas, ele tinha que subir na biga e soprar no ouvido do general a seguinte frase: “Lembra-te que és mortal”.
No hospital, um doente terminal, vê, pelo vidro do quarto, um bebê passar no colo da mãe - e pede para sentir o cheiro da criança -, e sabem por que? Porque percebe, pouco antes de expirar do mundo, que o grande mistério não é a morte, mas a vida. A vida!
Não precisa ser nenhum general 5 estrelas, nenhum Homero, nenhum Shakespeare, nenhum big brother... Sua história é, no entanto, para você, mais importante do que a de qualquer um, qualquer poeta, celebridade, é para ele, pois é a sua própria história. E é a história de um ser humano – não de um personagem inventado, elaborado, histórico, possível ou inexistente em qualquer outra circunstância sob o controle midiático das luzes favoráveis da ribalta - cheio de jogos de palavras -, mas a de um ser humano real e único. E vivo!