Olhemos a vida de perto. Ela é feita de tal maneira que sentimos o castigo.
Você é o que costumamos chamar de feliz? Pois bem, você não passa de um triste. Cada dia tem seu grande desastre e sua grande preocupação. Ontem você temia pela saúde de alguém que lhe era caro; hoje você teme por sua própria vida; amanhã será uma questão de grana; depois um mau tempo no dia do piquenique. Em 99 dias, apenas 1 de alegria e sol.
Os seres mais atentos usam pouco a expressão: "os felizes e os infelizes". Neste mundo, provavelmente saguão de outro, não existem felizes. As divisões e subdivisões das almas humanas: os que carregam mais luz e os que portam mais trevas; os que vivem no subsolo e os que pulam do precipício; os bajuladores e os que praticam o bem silenciosamente; os que enxergam tudo em preto e branco e os que tateiam estrelas; os que vivem na ilha da fantasia e os que se vendem barato ou caro; os que não enxergam um palmo na frente do nariz e os que fingem enxergar; os que só falam da bilis, do ódio, e não sentem o vento na pele; os que apontam dedos mas são incapazes de reparar nas próprias monstruosidades refletidas no espelho; os que devoram tudo e todos e os que dividem o pouco que têm.
E os que carregam mais luz, às vezes, só possuem um palito de fósforo, e, muitas vezes, um palito de fósforo molhado, na noite escura e sem estrelas. Mas aceitam enxugar as lágrimas do dia que nasce chorando, mesmo que estejam com suas almas e ossos em frangalhos. Eis a diferença. E eis, também, a diferença do mundo das crianças...
Para minha filha, que ainda não teve os sentidos deturpados pelo mundo, dia cinza é tão "bonito" quanto dia azul. A chuva é um acontecimento maravilhoso: o céu ligou o chuveiro para lavar a terra, para alimentar as plantas, para a gente rir sem motivo, só porque pode rir. E a convivência com as crianças revelou algo que eu já sabia, mas que estava adormecido.
Preciso resgatar a criança que fui e voltar a acreditar que é possível ser o herói da própria jornada. Porque quando minha filha escuta um conto de fadas ou assiste a um filme, ela enxerga ali expressões metafóricas de seus desafios cotidianos. Ela ama os heróis corajosos, habilidosos, generosos, e se identifica imediatamente com eles.
Pergunta para uma criança qual personagem ela gostaria de ser na história que acabou de ouvir, e a resposta quase sempre será: o protagonista. A criança não quer ser o amigo do herói, a irmã do herói, o ratinho de estimação do herói. Bom mesmo é montar nas próprias pernas e deixar de seguir os outros feito novela.
E eu, dividido entre a gruta, as entranhas da montanha, o fundo do mar e o azul do céu, sou o super-herói das minhas filhas. É uma grande responsabilidade. Na luz ou nas trevas se sofre. E como se sofre na luz! Aliás, o excesso de luz: queima, cega! Então, sem óculos escuros, com a visão dupla, turva, embaçada, depois do último soco da cara, levanto minha carcaça fraturada da lona, ouço o sino.
Não me sinto preparado para o próximo assalto. Sou expelido como um recém-nascido condenado à vida. E agradeço a oportunidade. Ser o herói não significa parar a Terra para salvar a mocinha como o Superman faz. Ser o herói é sentar no chão da sala e jogar cara a cara com as minhas filhas. É limpar o xixi. É estar presente de corpo e alma. É pedir desculpas quando erra. É errar diferente. É ensinar a filha como guardar os brinquedos antes de dormir. Não é invejar o outro, mas mergulhar na própria vida. Pois ela é única, é sua, e um dia acaba. É ser o protagonista da própria existência.
Afinal, ninguém vive por mim, por você. Vive?