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"A Peste", obra que é considerada a Magnum Opus, a grande obra, o tiro certeiro de Albert Camus, publicada em 1947, conta a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade em meio a uma epidemia que assola a cidade de Oran, na Argélia; questiona diversos assuntos relacionados à natureza do destino e da condição humana: virou best seller.
Até Domenico de Masi, bem na hora do recreio e montado no velotrol do seu "Ócio Criativo", escreveu sobre ela e sobre a nossa Covid-19, recentemente.
"A Peste" está em alta. E eu, embaixo, numa espécie de fundo de poço interior. Contemplei o suicídio com seriedade e dor. O suicídio do menino. 10 anos. Viralizou nas redes sociais. Perdeu de visualizações pro famoso vírus e pro presidente limpando o nariz ou sentado com o bundão no chão. Mas não na minha cabeça.
Pode existir coisa mais triste que uma criança tirando a própria vida? Mas enquanto pensava nisso a ideia se tornou excessivamente melancólica, e afinal decidi que era um negócio mórbido demais para se enrolar. Eu tenho uma aversão inerente por admitir a derrota. Mas e aquele que não quis fazer parte do jogo sujo do nosso mundo? Teria sido covarde? Derrotado? Ou teria sido corajoso?
Tive medo de ouvir a resposta que meu peito ameaçava arranhar dentro de mim.
Minhas filhas dormiam no meu peito depois de um dia repleto de aventuras, castelos, descobertas e risadas, no apartamento. Sentia o perfume de seus lindos cabelos e uma paz exterior tentando furar meu corpo e acabar com minha inquietude e meus sonhos intranquilos. O tempo estava tão bonito lá fora e olhando a estrela azul - azul da cor do mar -, mar que nem sei quando ou se poderei de novo mergulhar. E fazia um temporal dentro de mim. E a vida passando na TV.
Não conseguia sentir o gosto da comida. E as pessoas procurando abrigo. E as pessoas procurando respostas. E as pessoas passando fome. E os políticos fazendo propaganda de si mesmos. E o comercial de TV vendendo ilusões a quem não pode pagar. E as pessoas procurando culpados.
E tem esse amor dentro de mim. É que "às vezes arranha feito farpa", irmãos. Eu só queria dormir como uma criança que ainda não perdeu a inocência. Como um cão babão que não sabe que vai morrer. Mas isso é impossível. E ontem eu nem dormi. Velei como um São Sebastião o sono de minhas filhas.
No vazio do meu quarto fiquei quebrando a cabeça e com flechas fincadas pelo meu corpo, de joelhos, rezei: "glorioso São Sebastião, protegei-nos contra a peste, a fome, a guerra, a ganância, a ignorância".
Esqueci de dar atenção pra minha mulher; fiquei passivo como um boi no pasto, sonhando com a cura, não apenas do vírus, mas com a cura da maldade humana. Sonhei com paraísos artificiais, com paraísos reais, com uma humanidade unida, com crianças brincando, com feridas cicatrizando, com abraços sinceros, com reconciliacões improváveis e impossíveis, com uma flor no asfalto.
A razão, meus senhores, dizem que é coisa boa, e não há dúvida que seja. Para fazer contas, né? Para se unir à matemática e calcular a construção daquele prédio ali. Porque o que eu vejo, muitas vezes, é algo bem ignóbil, e sempre a vida humana ilógica, cruel e não a porcaria da exatidão de uma raiz quadrada. A única coisa realmente exata é o corpo morto, numa linha reta, sem reclamar, calado.
Peço perdão por mim. Peço perdão por nossa raça. Peço perdão por nossa ração diária de ódio e egoísmo. E confesso como um doente terminal pro padre surdo e cansado que, muitas vezes, o vulto humano refletido no espelho me envergonha mais que um vírus mortal.