Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 01 (ou primeira semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Minha irmã gêmea veio me ver esta manhã. Me contou que um jogador de futebol cortou a namorada em pedaços e deu pros cães devorarem. Foi preso, mas ganhou liminar e convites pra voltar aos gramados.

Sandra tava tão indignada! Tive que aturar horas de mimimi sobre machismo, violência de gênero, feminismo, justiça, etc. etc. etc. (tô vendo a hora de não deixarem ela sair daqui, por conta desse tipo de fixação...).

Acabamos discutindo, porque ela não conseguiu entender que não existe feminicídio. O que há é homicídio, derivado do latim hominis excidium, que quer dizer "destruição do homem", substantivo masculino, como registrado em qualquer dicionário...

E se só existe homicídio, só homem morre de morte matada, ora! Logo, essa história sobre a tal namorada (e as outras cinco mil mulheres assassinadas por ano no país) não passa de invenção da mídia...

Tô errada? 

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Terça-feira. Sonhei que tinha nascido num país comandado por uma espécie de Rei Midas às avessas.

Ao contrário do personagem grego, que tudo que tocava virava ouro, tudo o que o presidente monarca dessa nação falava era merda...

Tipo em 337 dias de reinado, dar 522 declarações falsas.

Ainda bem que tudo não passou de um pesadelo, né?

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Quarta-feira. Acordei pensando em Piti, minha vizinha de cela (como ela chama nossos quartos aqui no sanatório). É muuuuuito parecida com Sandra (ou comigo?).

Tá aqui porque é obcecada por lei, defesa de direitos, democracia e outras inutilidades, criadas por certo setor da sociedade para encenar um estado permanente de (tsc tsc tsc) vigília civilizatória.

Mas ela anda meio letárgica... Trocou a bravata pela melancolia, os brados de "processo neles!" por um baita pessimismo.

Pode ser excesso de anti-insurreissivo tranquilizante, mas acho que a situação se agravou depois do caso da repórter que fez uma denúncia e acabou presa. Motivo? Da denúncia, corrupção. Da prisão, não revelar a fonte da reportagem.

Do jeito que a classe anda mobilizada, ela vai mofar na cadeia...

(ou dar adeus à profissão).

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Quinta-feira. Passei o dia preocupada com Sandra. Tá cada vez mais parecida comigo... quer dizer, comigo antes de vir pra cá, pra curar uma mania perigosa, que contraí depois de passar um tempo num certo campus, que de verde não tinha nada, era vermelho puro, agora consigo enxergar...  

Então... por conta desse lugar cujo nome não ouso dizer, comecei a viver de utopias, a acreditar em coisas inventadas por quem não tem o que fazer, como liberdade, humanismo, respeito à diversidade... (arrumava cada confusão!).

Agora, não. Agora tenho os pés bem fincados na terra.

Já não implico com propagandas tipo "Duas gostosas e um sortudo", "Chupa, que é doce!", "É pelo corpo que se conhece a verdadeira negra", "Escravas, obedeçam seus mestres", "É difícil encontrar a mulher certa, mas se está buscando a errada... aqui tem muitas!"...

Também levo de boa as meninas do telemarketing, que me ligam religiosamente de segunda a sexta para travarmos o diálogo nosso de cada dia ("Oi-eu-queria-estar-te-oferecendo-um-plano..."; "...mas-acabei-de-fazer-um..."; "...eu-vou-estar-tentando-estar-explicando-que-esse-é-melhor...").

E... Deixa prá lá. Canso só de pensar no tempo que perdi com essa baboseira de cidadania e que tais.

O melhor que faço é estar indo dormir...

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Sexta-feira. Estão querendo proibir as visitas aqui no hospício. Disseram que é por conta de um vírus intersanatorial...

Mas a situação tá bem confusa!

Os médicos dizem que o assunto é sério, que é pra a gente ficar quieto nos quartos, e até o salão de jogos e a capela foram interditados.

Mas o chefe do hospital, que não é médico nem nada, diz que é tudo bobagem, que é só uma gripezinha...

Bem, como eu não sou doida, nem mas não suicida, vou me resguardar...

E você, vai apostar em quê?

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Sábado. Dia de visita, e Sandra não veio me ver. Pode ser por conta do tal confinamento, mas a enfermeira de plantão disse que não foi por isso, e que a ausência dela é um bom sinal. Significa que posso encarar os pedaços de mim. Colocá-los frente a frente, sem inventar almas gêmeas. Admitir que Sandra não é minha irmã. Sou eu (ou eu é que sou Sandra?).

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Domingo. Foi o primeiro domingo que ninguém veio me ver. Mas não me senti só. Tive a companhia de minha razão outra vez. Nos perdemos, mas nos reencontramos, vagando, em um território árido de sentido e repleto de antagonismos.

Em um dos lados desse mundo gris, vimos negros e negras apodrecendo em masmorras por um quilo de feijão, um naco de carne seca, um punhado de farinha; noutro, seres imundos imunes saqueando fé, saúde, autoestima, alegria, vidas.

Nos deparamos com semideuses de toga rosnando contra lanternas de afogados — e hordas nuas de tudo revirando latas à cata de restos... e dominados aplaudindo dominadores... e gays elegendo homófobos...

Escoltadas por anjos e demônios, resolvemos seguir a marcha dos sem (sem habeas corpus, sem delação premiada, sem foro privilegiado, sem imunidade parlamentar...). Mais de 200 milhões de sombras, num caminho sem volta.

Como a minha lucidez.

E eu.

(porque hoje é domingo...)