Cassiano Antico

Bastou um vírus para mostrar a todos o que na verdade somos


Foto: pxhere/Creative Commons

 
É na cidade de cabeça pra baixo/A gente usa o teto como capacho/Ninguém precisa morrer/Pra conseguir o Paraíso no alto/O céu já está no asfalto
-- Raul Seixas - A Cidade de Cabeça pra Baixo

Vejo Raul Seixas numa estrela cantando "O dia em que a Terra parou". Vejo cada palavra da canção fazendo sentido. Vejo o nosso egoísmo. Vejo o medo nos noticiários. Vejo o medo nos rostos que encontro nas ruas. Vejo o medo no vizinho. Vejo o medo estampado e em destaque nas vozes trêmulas.  E o causador do medo não é nenhum terrorista, nenhum Talibã, Al-Qaeda, nenhum líder do grupo Jihadista Estado Islâmico (EI).

Bastou um vírus da gripe peitudo como um chester de natal pro mundo virar de ponta cabeça. A grana surrupiada pelo político ladrão não poderá ser gasta. Sua viagem programada pro hotel seis estrelas não vai rolar porque o avião não vai sair do chão, o hotel está todo abotoado, as luzes foram apagadas, a piscina está vazia. Aliás, nem farofada na Praia Grande vai acontecer. Seu time do coração não vai jogar porque nos estádios ninguém entra. Os coachs motivacionais estão com depressão, espirrando dúvidas, enfado, prostração e medo de beijar bochechas. 

O autor do livro "Como Se Tornar Um Ninja em 10 Dias" está desaparecido. O presidente português do banco Santander morreu, vítima do Covid-19; mas parece que o dinheiro está em segurança. 

Corro pela casa com minhas filhas e sinto falta de ar. Elas me ensinam que "não é eu e meu, mas nós e nosso". Compartilham comigo o chocolate, o suco, a água, o pão, o sabão, o carinho, o sofá. 

O mundo vai ter que aprender essa lição tão básica de vida. Ou não sobrará ninguém. Seremos esmagados e extintos como os dinossauros. Seremos a nossa própria era glacial e escuridão. O momento que estamos vivendo mostra que falhamos, falhamos. Não? Dá uma olhada na bolsa de valores; o circuit breaker sendo acionado a todo instante; o dolar voando para além da atmosfera; a famosa apresentadora de tv aparecendo ao vivo com um pedaço de papel higiênico enrolado nos calçados e os olhos esbugalhados; traições sendo adiadas; aeroportos fechados; países fechados; Malafia e os perdigotos berrando, pensando que Deus é surdo, e Ele fica mudo; estádios de futebol sendo lacrados, jogos cancelados; aulas canceladas; shows cancelados; nas repartições públicas: nem moscas; no congresso Nacional: a turma sendo infectada; os presos fugindo do presídio; as empresas esperando por um milagre. E, na primeira coletiva de imprensa com a presença do presidente Jair para tratar sobre o Covid-19, acompanhado de seus ministros, todos usando máscaras, o presidente colocou a dele nos olhos, no lugar da boca, como uma festa à fantasia; ele estava se dando mal com a máscara - parecia briga -, o cara briga com tudo o que vê pela frente. Dá uma banana até pro poste!

As pessoas estão morrendo! O momento é grave. O momento é de união! De lavar a alma. De cada um fazer a sua parte. De um Trump mostrar ao mundo: não o que esconde debaixo da peruca espalhafatosa e grosseira, mas que dentro daquele peito estufado e arrogante e bélico também bate um coração. É hora de levantar uma só bandeira: a bandeira da paz. É hora de escolher: viver ou morrer. É hora de colocar os princípios acima das personalidades. Ninguém é melhor que ninguém. 

Porque onde termina o telescópio que nos permite ver o asteroide que se aproxima, começa o microscópio que nos ajuda a curar as doenças. Qual dos dois tem a vista mais longa? Qual é mais importante? Escolham.

Uma mancha de bolor é uma plêiade de flores; uma nebulosa é um formigueiro de estrelas. Os elementos e os princípios se confundem, se casam, multiplicado-se uns pelos outros. Máquina feita pela mente e espírito humanos. Engrenagem enorme cujo primeiro motor é o mosquito e cuja última roda é o universo. Todas as nossas diferenças ficam pequenas e insignificantes diante da morte. Quem vai abraçar a filha? Ver o filho nascer? Compartilhar a alegria e a tristeza com o amigo? Ver o Ceccato em cena? Receber o beijo da vó? Ver o céu estrelado? Ouvir "Garota de Ipanema"? Mergulhar no mar? Plantar a última árvore? Dar o primeiro beijo? Se não existir mais corpos humanos vivos sobre a Terra?

Como disse minha filha em gestos, que é mais contundente que qualquer palavra: "não é eu e meu, mas nós e nosso", me passando o sorvete, me dando espaço no sofá, me oferecendo o sorriso mais doce do mundo: me permitindo pertencer.

Claro que podemos superar. O único inimigo, obstáculo, do ser humano é ele mesmo. Está tudo em nossas mãos. Sujas e limpas.