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Fui caminhando de mãos dadas com minhas filhas até a escola. Dodó pediu água. Abro a lancheira com delicadeza e, depois de alguns segundos, ouço o barulho que minha filha faz sugando o mini "cantil", como um cão.
Me lembra o mais dócil dos cães; cães que sempre foram os amigos leais que tive na infância. Minha cadela Xuxa (dogue alemão), me esperando no portão de casa, com a precisão de um relógio suíço, todos os dias, quando chegava da escola; debaixo do gigante abacateiro - me confortava com seus olhos de anjo enquanto eu chorava escondido a morte de minha vó -, só ela era capaz de entender o que eu não conseguia. Meu cachorro Rambo (outro dogue alemão), encostava sua cabeça em mim e parecia querer sugar do meu corpo toda a dor, cicatrizar as minhas feridas, mudar a minha sorte. Seus olhos choravam por minhas tristezas, e se iluminavam, como grandes faróis, como o mais lindo nascer do sol: quando eu sorria.
Hoje: estão mortos, enterrados. Mas, de alguma forma, continuam vivos. Porque eu ainda não morri. Mesmo nas noites sem aurora em que que chamei a ceifadora para uma queda de braço, para um duelo de valentões, ela (a morte) tem perdido pra mim, e tem perdido feio - até hoje.
Caras como eu sabem que monstros não estão debaixo da cama; caras como eu não têm medo de cemitérios; caras como eu sabem que o bem e o mal moram dentro da gente. Caras como eu sabem que a luz não está no fim do túnel, mas dentro de nós.
Desde muito cedo havia conhecido a verdadeira miséria. Foi antes de ler "Os Miseráveis". Antes de Kierkegaard me jogar na cara que a construção da essência humana se dá a partir de nossas escolhas, do livre árbitro. O homem talvez seja o único ser vivo capaz de andar com uma gaiola pendurada nas costas, por escolha. Antes de Nelson Rodrigues confessar em "Memórias - A menina sem estrela" que passou grande parte de sua vida "preso", escrevendo cada palavra exclusivamente para agradar seus críticos e admiradores; e que se envergonha daquele tempo. Antes de me jogarem tudo na cara: eu vi.
Vi a verdadeira miséria bem na minha frente, e em mim. É a sensação de não valer nada. É aquela larva que passa sob nossos olhos, e ficamos inertes como uma formiga diante do Pé Grande. É a ausência, o vazio. E quem só viu a miséria do homem, não viu coisa nenhuma do nosso vasto e claustrofóbico mundo.
É preciso ver a miséria da mulher, a mulher humilhada, ofendida, sendo usada como um pedaço de carne; e quem viu só a miséria da mulher, nada viu; é preciso ver a miséria da criança. Ah, significa a maior ofensa ao universo, ao princípio de tudo. Tudo parece extiguir-se, a claridade do sol, a luz da moral, o sentido da vida, a esperança. Chiqueiro!
Eu vi porcos travestidos de executivos. Vi burocratas travestidos de poetas. Vi censores travestidos de sensores. Vi almas mais bondosas no inferno que em luxuosos comitês de ajuda ao próximo. Vi mocorongos travestidos de zen. Vi conchavos que fariam Maluf parecer um garotinho aspirante a batedor de carteira.
Minha alma se cobriu de vergonha. Vergonha da nossa raça; raça que tem o céu e escolhe a lama. Eu me repreendi por todos os nossos pecados. Quis ser Deus para dar um jeito em tudo, curar todas as feridas. Todas! Quanta inocência! Curar a ferida do homem, da mulher, da criança, do papagaio gago (que apanhava por ser gago). Vi-me pequeno. Impotente como um cão abanando o rabo e dando a patinha pro inimigo. Quis ser atropelado!
Ao toque desse troço chamado amor, do barulho de uma criança bebendo água num cantil, um cão sem coleiras me olhando: ressuscitei! Só posso mudar a mim mesmo e buscar a vida enquanto o mundo se suicida. Mas, por pior que seja o fim, por mais inevitável que seja a catástrofe, não levarei a agonia do afogado que abre debaixo da água suja olhos horripilantes. Estarei em paz. Como estou agora que é hora de dormir e vou ler a história da "Tartaruga e do Sapo" para minhas filhas, e elas vão perguntar qual a cor do meu anjo da guarda. E pode ser qualquer cor. Ou todas.