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Como diz a canção, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Não se deixe iludir pela aparente estabilidade das coisas, pois a natureza da vida é a impermanência, a temporalidade, todas as coisas passam, mudam, o que estava no alto cai e o que estava embaixo ascende. Quem diria que eu, um dia, seria pai, viveria além do meu umbigo, ajudaria minha filha fazer a lição da escola? Justamente eu que pulava com "Zequinha" o muro da escola.
Quando passamos pra lição de inglês, lembrei-me do tempo que morei nos Estados Unidos. Período difícil e importante de minha existência. Mas que precisei passar. Tinha profunda admiração pela banda The Doors e por Jim Morrison. Conheci as canções. Fui atrás de mais. Li o livro do John Densmore, "Riders On The Storm"; e ficava tentando entender aquele monte de slangs. Quando não conseguia, perguntava.
Estava fazendo o meu segundo intercâmbio estudantil na Carolina do Norte, Winston Salem (Estados Unidos). E tudo que encontrei pela frente: li, ouvi, ainda ouço. Fui nas fontes. Não são muitas. Mas Mr. Morrison me jogou pro Rimbaud, Baudelaire, Nietzsche. Foi um adianto pra mim. Eu, que havia sido, por muito tempo, escravo da ordem, cumpridor dos deveres, atleta: estava chutando o balde, vivendo o crepúsculo.
Aquelas páginas escritas por um amigo e companheiro de banda de Morrison: me "revelaram" algo que eu já conhecia - e como conhecia -, a dor de ser um dependente químico. De estar caminhando pro auge da dependência. Um tipo muito particular de solidão. De não saber a hora de parar. De não conseguir parar. De ser motivo de chacota.
Era muito familiar todo o exagero de Jim Morrison. Toda sua solidão. Toda sua busca. Tinha algo sagrado ali. E eu não me senti tão sozinho depois que li aquele livro. Porque eu não tinha coragem de contar pra ninguém tudo que eu vivia, tudo que eu via, sofria. Eu não cabia em mim. Nunca coube.
Jimbo se afogava cada vez mais naquela crise existencial a cada página, a cada linha que eu lia. Eu eu, estranhamente, encontrava conforto naquela escuridão, naquele abandono, naquela loucura. Diferentemente das pessoas, ele não tinha vergonha de admitir que sentia dor. Podia ser qualquer coisa nessa vida: mas jamais um hipócrita.
Eu já tinha intuição literária. Minha tendência, naquela época, não era o clássico, né? Por natureza, era zero acadêmico; e isso continua mesmo depois de minhas formações universitárias e acadêmicas. Berrava, ridiculariza, fazia chacota, brigava, namorava, procurava alegria na imundicie, assobiava e cantava, misturava Rolling Stones com Nelson Cavaquinho, Led Zeppelin com Adoniran Barbosa, Rimbaud com Dolores Duran. Mijaria no próprio Olimpo, na morada dos doze Deuses, mergulharia no esterco e sairia cheio de estrelas.
Enquanto as pessoas se borravam de medo do escuro, eu mostrava a lingua às almas do outro mundo, fazia caricatura dos grandes acontecimentos épicos. Mas Deus me quis inocente! Ou seria lúcido? Ou seria contador de histórias? Ou seria vivo? Ou seria pai da Valentina e da Isadora?
Minha vida mudou. Eu mudei. E, agora, explicava para minha mais velha, 6 anos - "turn on the lights". Lights!. Explicava "faces come out of the rain", "the music and voices are all around us", "can't you see that I am not afraid?".
O que era poente, virou nascente.
Não me agarrava mais ao efêmero, mas ao eterno. De caminhante das sombras, tornei-me tradutor da palavra "luz". Um ex-inquilino do fundo do poço que viu a mulher preparando outra pessoa, encostou a cabeça em sua barriga: minhas filhas! Um dia, estarei morto.
Mas até lá, farei valer cada segundo de minha estadia. Porque "daqui ninguém sai vivo" (The Doors).