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Tanto sangue derramado, tantos cemitérios abertos, tantas mães em lágrimas, sombras, gritos no abismo. Bonaparte fracassando em Waterloo. Já era tempo de o militar tombar. O excessivo peso desse homem sobre os destinos humanos perturbava até deuses. Desequilibrava! E o ponto final chegou. E o trono invencível, a grande águia segurando raios de trovão com folhas de oliveira: tornou-se a Ilha de Santa Helena.
No que sou interrompido. "Olha pro céu, papai. Tem estrelas". Explico. Estou no escritório, escrevendo, lendo. Valentina entra com os cabelos presos nas laterais, depois do banho; já é noite, ainda há pouco brincava no chão da sala e - de repente, pediu pra mãe fazer seu cabelo igual ao da Luna ,- aquela do desenho "Show da Luna"; que faz mil perguntas; que vira borboleta; que sobe nas árvores para trocar ideias com os bichos; que vai até a lua - "e são tantas perguntas"; que tem um irmão chamado Júpiter.
"Olha o meu cabelo, papai". Perdi a página do livro, esqueci dos personagens, da trama, toda a coisa existencial sumiu naquele instante, o texto que escrevia empacou, deu branco, tudo se foi com os Highlanders nas montanhas sangrentas de Waterloo.
Estou a salvo. Olho pra minha filha com toda atenção do mundo e digo com o coração tomado de alegria: "Nossa Senhora! Como você está linda, filha!" Ela sai em disparada, derrubando risos e mais risos pelo chão. (Aquela alegria seria capaz de apaziguar o coração de um homem-bomba, de um condenado, de reconciliar países, de conceder perdões).
Diz em voz alta pra mãe: "Papai falou: Nossa Senhora, como você está linda". Valentina. A Zá. Zá foi como ela primeiro chamou a si mesma. E a gente, hoje, a chama carinhosamente também. Fiquei ouvindo as duas rindo, e me senti tão junto: apesar das paredes nos separando.
O livro dormiu na minha barriga, só percebi mais tarde, quando me levantei e ele caiu no chão. Waterloo ficou naquele barranco. Sem cobrança, senti vontade de olhar pro céu. Faz dias que não olho.
Minhas filhas sempre me perguntam a cor do meu anjo da guarda (se é verde, rosa, preto, azul, amarelo, ou se tem todas as cores), me mostram o céu, o infinito, a delicadeza, a formiga, o nada que sou quando tento ser outra coisa. Elas são o que eu entendo como motivo, meu time de futebol, minha canção favorita, amor incondicional...
Nem sabia que tal sentimento poderia habitar dentro de mim. Minhas filhas gostam de contar estrelas, mas não ligam quando não conseguem enxergar nenhuma. Curtem do mesmo jeito o pisca-pisca do caminhão de lixo; têm o mesmo respeito. E eu, ainda que não me sentindo digno de tamanha beleza diante de mim, não sou tão burro para não aproveitar essa segunda, terceira, chance da vida. Inventar um modo de continuar de pé depois de caído: eis o grande desafio. Fazer das últimas palavras a primeira. Parar de pensar. Apaziguar. "Olha pro céu, papai. Tem estrelas". A voz de um querubim sussurra para todos nós nessa noite.