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"O menino morreu". Luizão me conta assim que abro a porta do apartamento. Ele é o zelador do prédio e estava limpando o nosso andar. Os olhos marejados, vermelhos, tristes. Quase não o reconheci, pois é um homem alegre, com um sorriso bonito a iluminar o ambiente.
Pergunto quem é. É do sétimo andar, mora no prédio há três anos. Nasceu com fibrose pulmonar; era pra morrer aos 18 anos, segundo os médicos. Morreu nessa madrugada, aos 22. Foi rápido. No dia anteror, sorriu. Não precisou temer a velhice, porque ela nunca vem sozinha. Não tinha barba. Era um Menino.
Mergulho na memória e não consigo encontrar o Menino. Não vejo o seu rosto. Me esforço. Tento me recordar das pessoas que encontrei no elevador nesses últimos anos; faço uma pequena viagem no tempo, e nada. Luizão traduz pra mim, procura por uma foto em seu celular, mas não acha. Digo que está tudo bem. Ele chora. Abraço o meu amigo. Sinto vontade de chorar. Me despeço.
Quando volto, minha mulher diz que fomos convidados para o enterro. Me sinto mal, não acho que seja a hora mais apropriada para conhecer o Menino. Sinto que cheguei tarde demais. Ele morreu bem em cima da minha cabeça pensante. Ao entrar no meu escritório, deparo-me com o livro “A Arte de Escrever” do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), junto a tantos outros livros que estou relendo para uma série de trabalhos.
E o que isso tem que ver com minha coluna "Papo de Pai"? Tudo. O filósofo afirma que “a peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito" e que "nada é mais prejudicial ao pensamento próprio do que uma influência muito forte de pensamentos alheios".
Feito tais considerações: é exatamente isso que a gente vê. Lê. Nos jornais. Nas bocas. Nas publicações. Nos livros. Muitos parênteses. Um mundo de aparências. Um acervo de citações. Até nos pêsames. Até na dor. Uma vida de sermões e zero de acolhimento. E nem é coisa exclusiva de erudito. Ninguém usa a própria cabeça. Imitação barata.
Um tigre que copia um tigre torna-se um sagui, não é? Parece que para algum sentimento, pensamento, ideia, qualquer coisa, ter algum valor: temos que nos agarrar a um tronco apodrecido, a uma bote furado. Pode até ser uma "poposuda" famosa que vai dizer que a "Divina Comédia" (Dante Alighieri) é mais divertida que Zorra Total, porque ela ama comédia. E terá muitas curtidas, emojis, milhares de seguidores. Coraçõezinhos!
Lembro do truque que usava para os textos universitários. Geralmente fazia as dissertações em duas partes. Na primeira etapa, carregava na "erudição", nas perucas. Bem pavão... E aí, na segunda dizia algo do tipo: "agora vai a minha opinião sobre o tema em questão, prezado professor". E usava o meu "olhar".
Já havia aprendido a duras penas que não podia pensar; e nem em imaginação poderia expressar o que sentia. E muito menos ver. Porque somos do tamanho que vemos. Mas se não podemos ver, então, deixamos de existir. Não só na Universidade, mas, essencialmente, na vida.
Não podia ver a parede vulgar; a falta de dignidade dos adultos; o cheiro da mentira inundando o ar que respiro; a tia velha maltratando o filho homossexual; a pobreza em pele e osso nas ruas do Centro; a tristeza da morte; os gestos maquinais do padeiro; os coraçãos de gelo no metrô; o choro demente da viúva do segundo andar; o grito escandaloso do amputado; todos faziam vista grossa enquanto Geni era apedrejada; ainda somos os mesmos hipócritas que jogam pedras na mulher enquanto Jesus desenha na areia.
A imensidão maravilhosa do universo nos passa despercebida! Uma espécie de pacto com a indiferença. Pena que a vida se encarregue de matar o sentimento mais pungente, mais cristalino; o olhar limpo, puro, que trazemos para esse mundo. E que posso vislumbrar latente em minhas filhas.
A morte do Menino trouxe uma enxurrada de reflexões como estas e outras. Uma tempestade de fantasmas cai sobre minha cabeça. Fecho o livro. Apago a luz. Os fantasmas foram todos embora. Eles não se atrevem: o Menino morreu. O Menino morreu!
A bondade está preservada, imaculada. Lembro do seu lindo sorriso. É uma recordação curativa - como sonhos que não envelhecem -, como uma canção do Milton Nascimento. É um sorriso de menino. Na idade que partiu: as asas ainda não estavam perdidas. Velo o sono de minhas filhas.
Até um dia, Menino!