Cassiano Antico

A generosidade e a esperança vão junto com a bicicleta de Valentina

 
Tesouros não são apenas ouro e prata, amigo
-- Capitão Jack Sparrow

Valentina aprendeu a andar de bicicleta. "Me roda, me força, me vira, me encanta, me leva" - diz à bicicleta. As pessoas param para assistir. Parece que estamos numa peça de teatro. Num glorioso espetáculo.

Foto: pxhere/Creative Commons

A protagonista é a alegria. Anda em círculos como se desse voltas ao redor do mundo. Entra pelo Uruguai, em ziguezague, sai no Japão, chega até a China - com os cabelos flutuando -, pula a Muralha de Qin Shi Huangdi, volta pelo Rio Grande do Sul. O sol brilha sobre todos nós. O coração do pai fica aflito. Toda poesia do mundo: bem na minha fuça. Tudo que sou e posso ser: um pedal.

Não me lembro como eu era antes de você, filha. Só posso pensar no Natal, em "A Christmas Carol", de Charles Dickens... Após a visita dos três espíritos, Scrooge, o grande avarento maldoso, amanhece como um outro homem. É transformado. Passa a amar, a ser generoso com os que precisam, e a ajudar o seu empregado Bob Cratchit, tornando-se um segundo pai para Pequeno Tim.

Natal, o tempo de benevolência, perdão, generosidade, esperança - apesar de toda hipocrisia. A única época que conheço, no calendário do ano, em que homens e mulheres parecem abrir livremente seus corações. Pena que dure tão pouco.

Árvores antigas testemunham o espetáculo mais singelo que pode acontecer em tão pequeno espaço. O espírito de Natal voltou, ele está aqui.

Olho ao redor e vejo muitas bocas sorrindo - uma senhora -, uma espécie de viúva machadiana bate palmas... Outras pessoas a acompanham. Fico paralisado. E reflito sobre o tempo, a velhice, e imagino minha filha antes de existir. Ela já existia. Porque uma coisa construída só pode ser admirada depois de construída. Mas algo desejado com todo o coração ama-se mesmo antes de existir.

Valentina! Dando voltas ao redor do seu pequeno e gigante mundo, fazendo com que as pessoas esqueçam de seus problemas, de suas afliações: por alguns instantes. Nem Osho, Nythiananda, Paramahansa Yogananda, ou as 15, 20 posturas da yoga (capazes de transformar um corpo): seriam competentes o suficiente para causar tamanho bem-estar, mudar sua sorte, obrigar o sol a não se esconder.

Como se em nosso mundo nunca houvesse pisado uma rainha Ranavalona I, um Benito Mussolini, um Papa Doc, um Hitler, um Harold Shipman, um Maníaco do Parque, um juiz corrupto, um cartola ladrão.

Os olhos do pai se enchem d'água que até a vista se atrapalha - como na canção. Um velho de cabelos brancos - igual algodão doce -, me olha como se me cumprimentasse, ou até mesmo me abraçasse ternamente.

Tento retribuir o carinho com um olhar parecido; acho que nem chego perto. E, como disse anteriormente, medito sobre a velhice, sinto a velhice. O vô morreu! O vô tinha estilo.

Não há verniz que esconda os veios da madeira e, quanto mais se enverniza um porrete, mais os veios se manifestam. Como os velhos que pintam os cabelos - quanto mais tentam disfarçar os pelos brancos que se alastram sobre o crânio -, mais revelam as rugas das faces.

Não existe plástica capaz de nos trazer de volta a juventude dos 20, dos 15 anos. A natureza tem sua própria sabedoria. À medida que a juventude fugia do vô, mais se via o fogo da vida.

O vô substitiu os cabelos pela tolerância, a saúde pela alegria, e seu olho chorão ria continuamente. Como eram lindas aquelas rugas de expressão!

Envelhecer com dignidade requer talento e coragem. O vô também viu Valentina abandonar as rodinhas da bicicleta. Ele morreu pra esse mundo, mas vive dentro de mim. Faz-me companhia até nos momentos de completa solidão.