Cassiano Antico

Reflexões para lembrar que o fim pode estar na próxima curva

Curva
Foto: pxhere/Creative Commons

 
E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano
-- Clarice Lispector

Início das aulas. Valentina (6 anos) começa hoje o primeiro ano. Parece que foi ontem que a segurei na maternidade. Vai lendo tudo que encontra pela frente: jornais, revistas, livros infantis, outdoors, avisos de Uber... Me pergunta o que significa a palavra "contraditório". Até que faz sentido, né? O mundo, os humanos, tudo o que fazemos: é contraditório.

Fomos caminhando até a escola - levei sua mochila de unicórnio cor de rosa e seu material escolar. Fomos de mãos dadas, conversando. Subi até a sala de aula, conheci sua professora nova - minha filha se despede de mim com um beijo no meu rosto. Desço as escadas da escola com uma sensação boa em algum lugar dentro de mim e um sorriso bobo pendurado na cara. Ela está feliz!

Viajamos bastante, nas férias. Ficar na gaiola do apartamento seria um suplício para as crianças e, principalmente, para nós (Ju e eu). Provavelmente teríamos ido à completa loucura. Praia, montanha, cheiros diferentes, pessoas diferentes, casa dos avós, bolo de milho, algodão doce, escorregador, risadas, praças públicas.

Valentina: "Papai, a nossa casa é onde a gente está, não é?". Abraço apertado minha filha. E só consigo olhar pra ela... Como nós adultos temos o dom de complicar as coisas!

Muita buzina, muita cara feia; feia de tristeza, ambição, narcisismo, solidão; carro cortando carro por todo lado, gente cortando gente - e acabamos todos juntos no mesmo sinal fechado, na mesma vala. Ansiedade, pressa, fazer 24 horas valer por 72, 100 horas. Queremos ar, respirar autonomia - liberdade -, mas ao invés disso, sentimos que alguém nos ofende, nos humilha. Não é só a pressão no trabalho, a cobrança das "metas", o alto rendimento constante, a disputa injusta, as comparações cruéis que fazemos. Esse alguém: as mentiras que contamos para nós mesmos. 

As pessoas (incluo-me dentro dessa) andando por aí como se o mundo devesse a elas alguma coisa, muitas coisas, coisas. Mas ele, o mundo, já estava aqui bem antes de nós, não estava? Twain já o sabia. Metade dos problemas desaparece se conseguirmos encontrar um culpado para eles. Daí a função de bobo da corte ser tão apreciada já no Egito Antigo.

Nessa orbe claustrofóbica que inventamos, até as paredes têm lepra, os olhos são devoradores. Por isso a necessidade de desacelerar um pouco, fazer coisas que nos dão prazer, respeitarmo-nos, escancarar janelas emperradas, meter o pé na porta que nos aprisiona... Reavaliar nossas escolhas, cuidar do nosso jardim, pois como dizia minha vó: "Tudo que o dinheiro pode comprar é barato, meu filho". E porque, no final das contas, quem terá a derradeira palavra será sempre o coveiro. Não será o chefinho, Cioran, o político mentiroso, o poeta de cachecol, Nietzsche, a epilepsia de Dostoiévski, a celebridade do momento, nossa severidade atávica... Não! E muito menos o que fulano ou sicrano pensa sobre você ou sobre sovaco depilado ou sobre sexo antes do casamento. Nada disso terá importância. Aliás, nunca teve.

Há mais verdade nas sensações elétricas de uma mão humana, num simples olhar de um animal, no vento lambendo nosso rosto, no pôr-do-sol -, quando a Terra fica mais iluminada que o céu escuro: do que na mais sofisticada filosofia livresca. Basta estar atento. 

Visto do alto, por exemplo, por uma janela de avião, o oceano aparenta ser uma massa uniforme de água. Uma extensa poça d'água, um borrão de tinta sedentário. Mas, na realidade, os oceanos são labirínticos, pautados por ventos que agem tanto na superfície como lá no fundo. Muitas vezes, em sentidos opostos, afetados pela mudança das estações, fenômenos geológicas e as fases da lua que alteram os sentidos e o ímpeto das marés,  relata em detalhes Laurentino Gomes no livro "Escravidão, volume 1". 

Vida não é redação pra vestibular: com introdução, desenvolvimento e conclusão - como receita de bolo. O fim pode estar no meio da próxima curva. O começo pode aparecer no fim. O intervalo pode ser "Você saindo de um temporal com o sorriso mais bonito do mundo" - banda "Saco de Ratos". Somos finos como papel. Não sou o casca-grossa que tentei fingir ser, durante muito tempo, só para ser aceito, para sobreviver nesse mundo.

Quero viver! Quero que todos vivam! E isso aqui não é papo furado. Minha casca é fina como a sua. Eu sangro rios. Olho as crianças. Por que será que a gente esquece?

Elas, as crianças, ainda têm um coração, têm imaginação. Criança é amor! Deve ser por isso que Jesus tinha um carinho tão especial por estes pequeninos. E também por todos os que sofrem.