Ao longo da história, a sociedade habituou-se em se divertir com o sofrimento de outros seres, incluído o próprio ser humano. A cultura do pão e circo, que existiu – e ainda existe, mas com outra formatação – nos países de influência helênica, promovia a morte de escravos e prisioneiros de guerra, que quase sempre eram entregues às feras. Para completar o banquete sangrento, havia a distribuição de pão à débil plateia.
Na contemporaneidade, sob a justificativa da tradição e cultura, ainda aceitamos que circos explorem animais adestrados com os métodos mais cruéis possíveis. Em 2010, a juíza Ana Barbuda acatou o pedido do promotor de justiça Heron Gordilho e das Ongs de proteção animal, Terra Verde Viva e Célula Mãe, e determinou, por meio de liminar, a remoção dos animais do Circo Portugal, que se encontrava instalado no bairro de Cajazeira X.
Uma outra prática defendida pela tradição, é a mutilação do órgão genital da mulher, mais conhecida como Mutilação Genital Feminina (MGF), na qual são submetidas meninas com idades entre 4 e 8 anos, jovens e mulheres adultas.
A MGF é realizada em mais de 30 países do nordeste, leste e oeste do continente africano. Cerca de 18 destes já a consideram como crime. No entanto, mesmo tendo um instrumento legal sobre essa tradição, isso não impede que a mutilação ocorra, principalmente, de forma clandestina.
Nesses países, quem se manifestar contra a MGF é acusado de opor-se às tradições ancestrais e aos valores familiares, tribais e religiosos, além de rejeitar o seu próprio povo e sua identidade cultural.
Voltando à Bahia, terra de tantas tradições, fazendo as devidas ressalvas, não é diferente. Durante os festejos do 2 de Julho de 2011, a Terra Verde Viva produziu um documentário intitulado “Salve o 2 de Julho e os Animais” - disponível no Youtube - onde são mostradas imagens do abuso imposto pelos tradicionais Encourados, do município de Pedrão, na Bahia. São vaqueiros que vêm todos os anos ao cortejo representar àqueles que lutaram na batalha que definiu a independência da Bahia.
No vídeo, animais estressados ameaçam os participantes do cortejo; sem ferradura, escorregam nas pedras portuguesas, são chicoteados e furados por chuços e esporas com frequência por aqueles que deveriam zelar pela sua integridade física, afinal, segundo o prefeito de Pedrão à época, “o vaqueiro sem o cavalo não é vaqueiro; ele ama o seu animal”. Mas que amor é esse? Amor que agride, derrama sangue? Difícil de entender esta relação, a não ser que a mesma seja baseada no sadismo.
Outro exemplo desse “amor” é o descaso que vem sofrendo os jumentos do interior do nordeste do Brasil. Esses animais que ajudaram tanto o homem do campo a superar a seca; carregando tonéis de água, leite, e o próprio agricultor no lombo, vêm sendo descartados de forma irresponsável às margens de rodovias estaduais e federais. Tal atitude, além de desumana, é irresponsável, por causar risco de acidentes graves a motoristas e motociclistas.
Na Bahia, a solução dada pelo Governo do Estado para diminuir a população de jumentos e cavalos abandonados foi a mais prática: autorizar o abate de asininos nas cidades de Amargosa e Itapetinga. A carne do animal é exportada para a China e o Vietnã.
Só que nem o mínimo de dignidade foi dada a esses seres em seu corredor da morte. Denúncias de maus tratos chegaram a ser mostradas pela imprensa logo após um mês do início dos abates.
É desta forma que o bicho-homem costuma reconhecer quem sempre esteve à sua disposição. Se não fosse pela devoção de alguns abnegados, que como vigilantes incansáveis amparam, na maioria das vezes com recursos próprios e denunciam os abusos a esses seres - apesar de a lei ainda não punir o infrator como deveria - eu teria vergonha de pertencer à raça humana.
E se não bastasse a insensibilidade de muitos que ignoram a questão - seja por falta de informação, ou de evolução intelectual e espiritual mesmo – "intelectuais" vêm a público se colocando como defensores da história e das manifestações culturais, e com seus olhares viciados corroboram com a manutenção de culturas que causam danos à vida.
Nenhuma manifestação cultural deve ser mais importante que o respeito à vida, de todas as formas que ela se manifeste. Muito menos para fins de divertimento humano ou para o seu conforto. Não somos seres superiores e provamos isso todos os dias destruindo o ambiente que é vital à nossa sobrevivência.
O sofrimento que impomos na atualidade aos animais é o mesmo que acontecia com os negros durante a escravidão. A quem defenda que a escravidão foi uma alternativa barata para os países explorarem a mão de obra humana, e foi. Mas com os anos, a prática entrou no cotidiano das pessoas e passou a ser cultural, o que, até os dias atuais, causa danos aos negros e ao país.
Bem como os animais, a privação da liberdade dos negros era mantida, não só por aqueles que se beneficiavam diretamente com a situação, mas também pelos menos insensíveis, que viam o homem e a mulher negra como hoje são vistos os bichos, subjugados e marcados a ferro pelo seu senhor.
Enquanto formadores de opinião insistirem em perpetuar qualquer tipo de exploração, antes a do homem pelo homem, hoje, deste sobre o animal, continuaremos a sofrer as consequências disso por meio de tragédias humanas. Se continuarmos a nos comportar feitos verdadeiros animais selvagens, aplaudindo os mesmos erros dos nossos antepassados sob a égide da cultura e da tradição acima de qualquer coisa, continuaremos num sonho utópico de um mundo melhor e mais humano, se é que a palavra humano é mesmo uma coisa boa.