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Procissão de Bom Jesus espalha a fé pelo mar que banha Salvador

Em 2019 uma tradição acabou rompida: a presença da Galeota Gratidão do Povo

Foto: Kithi
A procissão marítima pela Baía de Todos os Santos
A procissão marítima pela Baía de Todos os Santos

A procissão de Bom Jesus dos Navegantes reuniu dezenas de embarcações na Baía de Todos os Santos, na manhã desta terça-feira, primeiro dia de 2019, sem a tradicional Galeota Gratidão do Povo, impedida de navegar pela Capitania dos Portos, por má condições.

A imagem foi levada em um catamarã, do cais do Segundo Distrito Naval até a Ponta de Humaitá, de onde seguiu carregada pelos fiéis, junto com a de Nossa Senhora da Boa Viagem (que se encontrava em terra), em procissão, agora a pé, até a Igreja da Boa Viagem.

A ausência da Galeota Gratidão do Povo na Procissão Marítima em louvor ao Senhor Bom Jesus dos Navegantes foi muito sentida no ensolarado primeiro de janeiro em Salvador. Embora tenha cumprido com competência a função de levar a imagem no cortejo, o catamarã Senhor do Bonfim, cedido por um dos muitos proprietários de embarcações em Salvador que ofereceram de coração seus barcos para suprir a súbita falta da Galeota, não era a Galeota, e isso impactou em quem participou da celebração no mar e em terra.

Ficou no ar uma sensação triste de quebra de uma tradição que sempre trouxe orgulho, e um sentimento de desamparo, acompanhado de uma pergunta: o que pode ser feito para que no próximo ano a Galeota esteja de novo singrando as águas da Baía de Todos os Santos?

Ao final da celebração, já na igreja da Boa Viagem, o presidente da Irmandade da Devoção do Senhor Bom Jesus dos Navegantes e de Nossa Senhora da Boa Viagem, Expedito Sacramento, que há 54 anos participa da realização dos festejos, emocionado agradeceu à solidariedade do povo baiano. Reafirmando sua fé nas “coisas do alto”, declarou que tem confiança na comunidade católica da cidade para que no próximo primeiro de janeiro a Galeota Gratidão do Povo retorne ao mar.

Como foi a procissão

As celebrações começaram com as missas, às 8h na Basílica da Conceição da Praia, presidida pelo arcebispo primaz, Dom Murilo Krieger, e às 9h na igreja da Boa Viagem. Às 10h em ponto a imagem de Bom Jesus dos Navegantes foi embarcada, no píer do Segundo Distrito Naval e o catamarã Senhor do Bonfim zarpou.


A imagem de Bom Jesus dos Navegantes é levada para o catamarã - Foto: Kithi

Fiéis se emocionaram com a imagem do catamarã contornando o Forte de São Marcelo para se encontrar com os barcos de todos os tamanhos para formar o cortejo. A imagme  é de encher os olhos de lágrimas e o coração de qualquer baiano de orgulho. Somos uma terra de tradições belíssimas.

O comandante da lancha Biônica de Maré, que faz o ano todo a travessia Salvador /Ilha de Maré, Antônio Raimundo Borges de Freitas, no dia primeiro de janeiro para todos os trabalhos para acompanhar a procissão. Ele faz isso há 45 anos, seguindo a tradição criada por seu pai, que já fazia o mesmo antes. Para ele, é dia de louvar o santo que o protege no mar. 

Veja no vídeo - Mestre Antônio fala sobre a fé em Bom Jesus dos Navegantes

Do Forte de São Marcelo em diante o cortejo seguiu pela costa passando pelo Solar do Unhão, pelos prédios imponentes da Vitória, pelo Yacht Clube da Bahia, chegando ao Porto da Barra, onde foi saudado com buzinas e fogos.

De lá, meia volta em direção ao Porto de Salvador, onde os marítimos aguardavam para fazer sua homenagem especial, mais uma vez com muitos fogos e as buzinas dos navios retumbando.


A procissão marítima na região da Cidade Baixa - Foto: Kithi

O próximo destino foi a Ponta de Humaitá. Normalmente, se fosse com a Galeota, a embarcação seguiria até a praia da Boa Viagem e a imagem do Bom Jesus dos Navegantes seria levada para encontrar com a de Nossa Senhora da Boa Viagem ali mesmo na areia, e as duas seguiriam para a igreja.

Mas o catamarã é uma embarcação maior o que exigiu o desembarque no píer da Ponta de Humaitá, onde Nossa Senhora esperava por seu filho. Desembarque feito, as duas imagens seguiram em procissão até a igreja da Boa Viagem.


Os barcos chegam ao Porto da Barra - Foto: Kithi

As belezas do caminho

Ao desembarcar e seguir a procissão nossa reportagem acabou por encontrar outras situações de beleza pelo caminho. Na Ponta de Humaitá, no conjunto de casas construídas por Tomé de Souza para sua família, onde Garcia D´Ávila também morou, encontramos nas janelas toalhas brancas penduradas, numa saudação aos santos e à procissão.


As toalhas nas janelas são uma saudação aos santos - Foto: Kithi

Este conjunto de casas é um dos primeiros a ter sido construído fora dos limites da cidade em seus primórdios.


Fiéis aguardam a imagem de Bom Jesus dos Navegantes - Foto: Kithi

O dono da casa, João Bosco, fala da tradição que vem se perpetuando por cinco gerações em sua família. 

Mais à frente, na Rua da Boa Viagem, encontram-se os moradores do Abrigo São Gabriel para Idosos de Deus, vestidos de branco, participando da festa, celebrando a passagem da procissão.

No dia primeiro do ano eles receberam a visita e as bênçãos de Dom Murilo Krieger que saiu um pouco da procissão e visitou o abrigo.

Ecumênica, a casa abriga pessoas de todos os credos e tem à frente  o Irmão Gabriel. 

Veja no vídeo - Irmão Gabriel fala sobre o Abrigo para Idosos de Deus

A festa de largo da Boa Viagem já não tem a força de outros tempos, apesar de haver barracas, comida e bebida. Mas dentro da igreja, que é pequena, a beleza da celebração emociona. Templo lotado, onde orações, cânticos, louvores e agradecimentos foram proferidos em frente às duas imagens.

A origem

Há dúvidas sobre a data em que começou a ser realizada a procissão marítima do Bom Jesus dos Navegantes em Salvador. Os indícios são de que já acontecia no século XVIII, quando o comércio marítimo era intenso em nossas águas e os marinheiros rogavam pela proteção divina do Bom Jesus dos Navegantes contra as tempestades em alto mar, navios piratas e doenças. Mas se sabe que a imagem de Nosso Senhor dos Navegantes foi trazida ao Brasil em 1750 por marinheiros portugueses.

Só em 1840 a notícia aparece pela primeira vez em uma nota do Correio Mercantil, onde foi publicado um convite ao “respeitável público” a participar da procissão e festejo, pela primeira vez, realizados com "decência e solenidade". O que será que acontecia antes disso?...

Mas o fato é que hoje, seguindo uma tradição mais que secular, a celebração promove os mesmos ritos e preparativos, que têm início sempre no dia 27 de dezembro e terminam  no primeiro domingo após o dia primeiro de janeiro com uma missa e procissão terrestre.

Galeria de Fotos


Os barcos seguem a imagem de Bom Jesus dos Navegantes - Fotos: Kithi

A Galeota

A embarcação que tradicionalmente conduz o Bom Jesus dos Navegantes na procissão marítima chama-se Gratidão do Povo porque foram os fiéis soteropolitanos, mas em especial da Península de Itapagipe que, através doações e trabalho voluntário de carpinteiros e pintores, construíram a embarcação, que foi levada ao mar pela primeira vez às 16 horas do dia 27 de dezembro de 1891, benta pelo cônego Ludgero Humildes dos Prazeres.

A nossa Galeota tem 60 palmos de comprimento, 12 de boca, 6 de pontal. O Arcanjo que orgulhosamente se posta em sua proa tem 6 palmos de altura e foi feito no Liceu de Artes e Ofícios por  João Guilherme e a ramagem e o emblema da popa foram feitos por João Batista.

Hoje, o letrista de 41 anos, Jackson Almeida, há 20 anos orna as paredes da Irmandade, assim como a Galeota, com letras em estilo gótico. O capricho da pintura, feita à mão, é movido pela fé e devoção que já vem da tradição familiar. Mais dois Almeidas, O pai e o irmão também faziam parte da tradição.

Para que a galeota esteja em condições para as procissões, uma equipe de dez pessoas cuida de cada detalhe. Já na água, 12 remadores, 1 proeiro e 1 timoneiro, este último auxiliado por um oficial da Marinha, compõem o time responsável pelo deslocamento da embarcação durante a procissão. Além deles, no máximo mais dez pessoas são transportadas, entre eles, o arcebispo, o pároco e membros da irmandade. 

O presidente da Irmandade Devoção do Senhor Bom Jesus dos Navegantes e de Nossa Senhora da Boa Viagem, Expedito Sacramento, conta que a luta é grande durante todo o ano para que a celebração aconteça. Somente para a festa são gastos mais de R$ 25 mil. 


Expedito Sacramento na Galeota (com 10 anos de idade) e agora

Apesar da visibilidade do evento, que atrai muitos turistas, o setor não contribui de maneira efetiva com os festejos. Os recursos são todos provenientes de doações dos fiéis, dos membros da irmandade e eventos produzidos, como feiras de antiguidades, jantares e bingos.  

Com a notícia do impedimento da saída da Galeota o representante da Câmara de Turismo da Bahia de Todos os Santos, Moisés Cafezeiro, foi conferir de perto os preparativos. A festa é divulgada como atrativo e 15 escunas organizadas pela Câmara, com cerca de 80 pessoas cada, irão participar.

Expedito Sacramento, presidente da Irmandade, já tem 54 anos nos cuidados da festa. Ele mostra com orgulho uma foto de 1954 da Galeota durante a procissão, na qual ele com apenas dez anos aparece concentrado ao lado do pároco da época.

Tesoureiro da irmandade há 15 anos, Jorge Burgos, explica que 120 agentes formam a equipe praia, responsável pelo andor. Com camisas e shorts padronizados, orientam os banhistas durante o embarque e desembarque da Imagem do Senhor Bom Jesus dos Navegantes na Galeota. O custo com a vestimenta é pago por cada participante. 

Segundo a tradição, o desembarque do Bom Jesus na Praia da Boa Viagem deve acontecer ao meio dia em ponto. 

Soundslide - Veja como foi a procissão

Os azulejos da Boa Viagem

Só quem navega sabe os perigos do mar.

Na época da colonização do Brasil, atravessar o mar aberto era tarefa de aventureiros, que singravam o oceano em busca de riquezas, novidades, aventuras, descobertas...

Como amparo durante a trajetória em mar aberto, os navegadores portugueses rogavam a proteção da Virgem Maria, que recebeu o título de protetora dos navegantes.

Em 1710 os franciscanos construíram uma igreja em frente ao mar da Baía de Todos os Santos, em Salvador, dando o nome de Nossa Senhora da Boa Viagem.

Naquela época já existia em vários lugares do mundo, incluindo a Europa, a prática do voto realizado, o ex-voto, ou seja, o fiel retribui publicamente a graça alcançada através da doação de objetos de arte para as igrejas, sejam pinturas ou esculturas.

No caso específico das grandes navegações, o fiel que alcançou a graça de chegar em terra firme, realizam o que é chamado de ex-votos marinhos, que pode ser em forma de barcos ou painéis pintados nas capelas ou salas de milagres.

Os azulejos votivos setecentistas presentes na capela Mor, dedicados à N. Sra. da Boa Viagem, na Bahia, talvez sejam os únicos no gênero existentes no mundo, diz Edgar Falcão, autor de "Relíquias da Bahia" e "Encantos Tradicionais da Bahia”.

Os azulejos da época ultrapassavam a intensão decorativa. Feitos sob medida em Portugal que optou pela cor azul, influenciados pelos Holandeses, as mensagens contidas nas cenas são explicitas. 

De cunho religioso, retratam a devoção exposta na presença da imagem de Nossa Senhora pintada na parte superior do conjunto, como se estivesse do céu olhando para as embarcações no mar revolto.

Abaixo da pintura o texto relata a graça alcançada.

Os azulejos votivos estão abandonados, como a Galeota do Povo, pelos dirigentes do poder público que esquecem da nova prerrogativa da economia mundial: a importância da valorização da memória e das tradições do povo como diferencial turístico para um público ávido por experiências estético-culturais diferenciadas.