Opinião

Água fresca, pote de barro e sabedoria popular nazarena

O autor é professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA

A sabedoria popular é rica em exemplos científicos. E em geral apresenta interessantes lições, pois a escola não é a única fonte de conhecimento – o cidadão comum, e às vezes não-escolarizado, pode realizar práticas absolutamente cientificas. Por exemplo, ao manter água em potes de barro, como aqueles vendidos durante a Feira dos Caxixis em toda época de Semana Santa em Nazaré (www.nazare.ba.gov.br), elas permanecem frescas e muito agradáveis de provar. Porque isto acontece? A ciência pode explicar de modo simples.

A resposta é curiosa: em muitas regiões deste enorme Brasil, principalmente naqueles rincões com pouco ou praticamente nenhum acesso à infraestrutura básica, entenda-se luz, asfalto e sistema sanitário (e às vezes até escolas), é comum as pessoas utilizarem de potes de barro para conservar água. E tais potes mantém a água numa temperatura um pouco mais fria que a do ambiente, resultando num frescor bastante aprazível.

Este fenômeno, que para muitos ainda pode ser considerado “crendice popular”, é explicado a partir das mudanças dos estados físicos da matéria, bem como da troca de calor entre dois corpos. O pote é feito de barro, que compõe o que chamamos de argila, um material relativamente poroso quando seco (mas os poros são imperceptíveis ao olho nu). Tal porosidade permite que uma pequena quantidade de água contida no pote, ao passar por estes poros, atravessando-o, entra em contato com o ambiente externo. Algumas pessoas dizem que o pote está “suando”, como já havia ouvido na agradável e pacata cidade de Nazaré das Farinhas (BA), ou seja, apresenta-se com aspecto úmido - mas na verdade o que é mais importante é que a água que atravessou o vasilhame de barro está passando do estado líquido para o estado gasoso. Nas escolas chamamos este último fenômeno de evaporação.

A água atravessar a camada de barro parece ser algo intrigante, mas é apenas parte da solução do fenômeno que resfria o líquido no vasilhame. Para que o processo de evaporação da água na forma líquida (ou seja, com menor energia cinética das moléculas) passe para o estado de vapor (isto é, com maior energia cinética das moléculas de H2O) é necessária a absorção de energia para efetivar a mudança. No caso do pote de barro, a água que evapora na sua superfície simplesmente retira energia (na forma de calor) do próprio pote e do restante da água que não evaporou, ainda dentro do vasilhame. Assim, ao extrair calor do pote para evaporar, incluindo a água que respinga fora do vasilhame, perde-se energia, resultando que tanto o pote como a água dentro do vasilhame resfriam.

Em situações assim, um pote de barro (ou ainda moringa) com água à temperatura ambiente de 25oC pode ser resfriada para até 5oC de forma relativamente rápida, estando assim bem fresquinha e agradável ao paladar, como em geral ocorrem em varias regiões do Recôncavo Baiano e Sertão adentro.

Para entender melhor o que ocorre no pote de barro, procure fazer um experimento em casa (se for criança, peça auxílio a um adulto!) - simplesmente pegue um pouco de álcool (ou acetona), e com um chumaço de algodão, aplique na pele. Depois assopre. O que você percebe?

Ao assoprar, a sensação de frio (ou frescor) é maior na região em que o álcool se encontrava, mas havia rapidamente evaporado, deixando de estar no estado líquido e passando para o estado de vapor. O princípio é o mesmo que ocorre na moringa com água, pois o álcool (ou ainda a acetona) evaporou devido ao calor que retirou da pele, deixando-a levemente abaixo da temperatura normal (por volta de 36oC), resultando numa sensação local de frio.

Tal prática é bastante comum em climas quentes e secos, e há registros do conhecimento desta tecnologia de resfriamento da água há mais de 4.500 anos – os antigos egípcios se utilizavam deste saber para beber água fresca no meio do deserto. Há também evidências na Ásia de seu uso milenar, tanto no Paquistão quanto na Índia, onde chamam o pote de barro de matka ou matki. Já os espanhóis chamam-no de botijo, e há um museu inteiramente dedicado a este particular vasilhame: www.museo-del-botijo.com.

Realmente, é como diz um velho ditado popular, repetido por meu bisavô nazareno, pois nasceu e se criou na famosa Nazaré das Farinhas: ‘“pote velho é que esfria água”, meu filho’... – pote este, claro, de barro!