Quem assistiu ao filme “Midway – a batalha do Pacífico” no final dos anos 70 em Salvador, no antigo Cine Tupy, na Baixa dos Sapateiros, deve se lembrar bem da técnica inovadora do cinerama, que consistia em uma tela de projeção gigantesca e com ângulo de 140º que permitia uma ampla visão em todos os cantos do cinema, e do moderno sistema “surround”, que consistia em projetar o som em três dimensões (o precursor do cinema em 3D) tornando as cenas mais realistas e próximas do público.
Hoje a tela cinerama é um projetor de má qualidade, desfocado na imagem que mal se permite ler as legendas, e o surround que se ouve são os gemidos nas poltronas e nos corredores, dos que ali vão em busca de sexo. Isso mesmo. Sexo. Explícito nas poltronas, corredores que dão acesso aos dois banheiros, e implícito, porque o único tipo de filme que é exibido é do tipo pornográfico.
Quem se submete a frequentar o cinema, sabe que vai encontrar o que há de mais bizarro e até mesmo exótico no seu interior. Do hetero de meia idade e idoso, que vai em busca de um prazer sexual diferente, a michês recém saídos da adolescência, que ali vão oferecer seus dotes a homossexuais de uma forma geral. Há também travestis, transexuais e voyeurs, aqueles que vão apenas olhar os outros fazerem sexo.
Pudor, recato, e timidez são características que estão distantes de quem entra no atual Cine Tupy. E caso tenha algumas dessas características, as salas e corredores em quase total penumbra facilitam as ações dos que fazem os assédios e para os que querem ser assediados. E mais, há uma espécie de pacto onde pouco se conversa e não se fazem perguntas.
O filme é outro
Ao contrario dos anos 70 e 80, quando ainda era considerada uma das melhores salas de exibição de Salvador, antes do advento dos shopping centers, o Cine Tupy tinha um público que ia do estudante ao intelectual e amantes do cinema. Como foi o primeiro e era, à época, o único cinema cinerama de Salvador, protagonizava grandes lançamentos de Hollywood, como “Ben-Hur”, de William Wyler, “Spartacus”, de Stanley Kubrick (com Kirk Douglas no papel-título), e “Midway”, com Henry Fonda e Charlton Heston.
Atualmente os lançamentos são tudo, menos inovadores. Nem mesmo o nome do filme é exibido no antigo letreiro, antes iluminado com acrílico e fluorescente, e que hoje exibe, sobre uma tábua pintada de verde apenas o aviso: “todos os dias 2 filmes eróticos”. E mais nada. Também não precisa, pois quem ali vai quer apenas fazer ou ver sexo, menos assistir filmes.
Das 10 às 18h30 diariamente são dois filmes pornôs, chamados eufemisticamente de eróticos, ao preço de R$ 7,00. Não há interrupção das sessões e as películas são as de piores qualidades, técnica e de material cinematográfico. Mas isso não parece incomodar o público, que na maioria das vezes sequer sabe que filme está passando.
Prática é explícita durante todo o dia
Não é preciso mais que meia hora para sofrer assédio sexual explícito. No momento em que a pessoa transpõe a bilheteira do antigo Cine Tupy sabe quer lá dentro vai encontrar de tudo em termos de práticas sexuais explícitas. A única regra é o silêncio entre os parceiros, só quebrado pelos gemidos, e pelo ranger das velhas poltronas de couro.
Basta sentar-se num lugar mais isolado e em minutos aparece uma pessoa ao seu lado, que em silêncio tenta estabelecer a prática sexual. Havendo recusa, não há qualquer tipo de problema. Em silêncio, a pessoa segue em frente e vai procurar outro que queira compartilhar o ato sexual. Não há como identificá-la claramente, pois em momento algum as luzes são acesas, mesmo quando acaba um filme e entra o outro logo em seguida.
Nos corredores que dão acessos aos dois banheiros, misturam-se travestis, transexuais e homossexuais, além de pessoas de meia idade. Nesses espaços são onde ficam os michês se exibindo. Qualquer olhar mais direto é encarado como um aceite e o michês explicitamente se oferecem. Em alguns casos eles têm uma espécie de agenciador, que indica o preço e o local, no próprio espaço do cinema, onde se pode fazer o ato sexual.
Tudo é feito com a cumplicidade dos poucos funcionários, que volta e meia circulam pela área de projeção ou vão aos dois banheiros (não há distinção entre masculino e feminino) levar papel higiênico ou água para lavar o chão. Tudo é feito no mais absoluto silêncio e sem que as pessoas se encarem umas às outras.
Para quem não conseguir encarar com uma certa naturalidade o que se passa no “escurinho do cinema”, em horários quase que simultâneos, acontecem cultos evangélicos na Igreja Universal do Reino de Deus, que funciona ao lado do antigo cinema e seus freqüentadores passam, necessariamente pela porta da casa de espetáculo de sexo explícito. Tudo na mais perfeita ordem e discrição.
Glamour é uma cena do passado
Ao lado do Liceu, Capri e Guarany, o Cine Tupy se situava entre os mais luxuosos e de primeira linha existente em Salvador na década de 70, quando ainda não haviam os grandes shopping centers. Na segunda linha vinham os cines Jandaia, Pax, Excelsior, Astor, Bahia, Tamoio e Bristol. Todos fecharam as portas e apenas o Tupy, no Aquidabã, ainda resiste.
O Cine Tupy foi inaugurado em 31 de julho de 1956, reformado em 1968, e foi a primeira sala do tipo cinerama da Bahia, com uma tela de grandes dimensões e ângulo de até 145º, que permitias uma visão plena do filme em qualquer espaço da sua imensa sala oval. Na Bahia não havia salas de exibições para projetores de 70mm e o Tupy lançou a inovação, junto com o sistema surround, sendo seguido pelo Capri e pelo Cine Rio Vermelho.
Além da majestosa sala de projeção, o cinema oferecia um foyer de primeira linha, com amplo espaço para lanchonete. O espaço foi idealizado pelo artista plástico Juarez Paraíso, e nos painéis brancos, contava-se um pouco a história do cinema, com gravuras de antigos projetores, filmadoras, o cinematógrafo dos Irmãos Lumières (inventores do cinema), e até os retratos de Walter da Silveira e Glauber Rocha. No final da década de 70, porém, tudo começou a mudar.
Hoje o cinema, que já foi da UPI (antiga CIC – Cinema Internacional Corporation), pertence à empresa Savinal S/A, com sede em Recife. O contato com os proprietários, contudo, não foi fornecido pelos funcionários do cinema, e muito menos há quaisquer referências de telefone da empresa na internet. Numa rápida busca descobre-se as informações: Savinal S/A Comércio e Indústria, CNPJ 09.942.020/0001-56; data de abertura 05/07/1973.