Cidade

100 anos de Carybé

Pintor do povo baiano, um cosmopolita de nacionalidade argentina, que se apaixonou pela Bahia e traçou profundamente, como poucos artistas já fizeram, a vida popular, mostrando a realidade do cotidiano, dos costumes e da religiosidade. Hector Julio Paride Bernabó, conhecido como Carybé, com sua sensibilidade, desenhou em cores vivas e marcantes a história da Bahia. Em telas, painéis, murais, pinturas, esculturas, desenhos e livros, o artista deu vida à cultura da terra escolhida para viver.

Envolto em seus pincéis e tintas, recriou a Bahia antiga, com seus pardieiros seculares, templos, ladeiras, solares, índios, escravos, a chegada dos portugueses e seus orixás.A cultura do povo baiano ganhou o mundo nas mãos do pintor, que hoje completaria cem anos. E em celebração a essa data, na quarta-feira, (09), às 10hs, será realizado no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, uma homenagem, com entrega de uma moeda com a imagem de Carybé, pela Casa da Moeda.

Seus gradis, esculturas, painéis, quadros fazem parte da paisagem de Salvador. As marcas de suas obras foram o candomblé, a mulata, o pescador, as lavadeiras, o samba de roda e as ruas beira-mar. “Salvador é um museu a céu aberto, além das obras de meu avô, que estão em diversos locais, há obras de Mario Cravo e de outros artistas, que referenciam a Bahia e deve ser preservadas”, disse Iara Colina.

 Encantado com a religiosidade do candomblé, o artista plástico dava vida aos rituais e orixás, que esculpidos em madeira parecem ter vida própria. A intimidade singular do artista com a Bahia para muitos literários, era único, seu amigo Jorge Amado, que também foi observador da história baiana e a fez lenda, falava em entrevistas que ninguém melhor do que Carybé retratou e amou os valores culturais da Bahia de maneira tão verdadeira.

“Os outros podem reunir dados físicos e secos, violentar o segredo com suas máquinas fotográficas e os gravadores e fazer em torno dele maior ou menor sensacionalismo, a serviço dos racismos mais diversos, mas apenas Carybé, e ninguém mais poderia preservar os valores do candomblé da Bahia”, assim explicava Jorge Amado.

Cidadão baiano, radicado na Bahia, chegou a Salvador pela primeira vez em 1938, como enviado do jornal argentino, Pregón, para fazer uma reportagem sobre Lampião. Nos anos 40, trabalhou em outro jornal no Rio de Janeiro. E como ele dizia, viajou muito à procura da “Pasárgada Pictórica”, morou em Gênova, Roma, Rio de Janeiro e em cidades de outros países, mas encontrou nas terras baianas diversidade que sempre buscara. A poesia de Vinícius de Moraes fala um pouco desse cosmopolita. 

“ É argentino, é brasileiro, é quichua, é asteca, é inca, é carioca por bossa, mas baiano por fé.... É um sambista milongueiro. Bate um violão de terreiro.E é santo de candomblé.É um compadre capoeiro...amado pelo mundo inteiro, menos de quem não dá pé”, assim era Carybé nos versos do poema de Vinícius de Moraes.

Em 1950, mudou-se definitivamente para Salvador, e ao se deparar com a cidade cheia de encantos, rica culturalmente e com muitos contrastes entre a riqueza e a pobreza, Carybé aqui ficou. “Por que a Bahia? Porque gostei. Procurei pra burro na América do Sul (o México eu ainda não conhecia) e encontrei o Peru e a Bolívia, que como aqui, são lugares de caldeamento, mas todos dois são muito fechados, muito sérios. A Bahia é alegre e por isso a escolhi”, justifica Carybé em entrevistas.

Assim que chegou à capital baiana, ele se tornou adepto do candomblé e depois de 30 anos de pesquisa, publicou, em 1981, a obra Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. O livro reúne desenhos das festas, trajes, símbolos e cerimônias presenciadas pelo pintor, e também o relato de uma trajetória em Salvador feita em um bonde por bairros como Rio Vermelho, Federação e Cabula.

Mais de 5 mil trabalhos

Ele morreu aos 86 anos, quando teve uma parada cardíaca durante um ritual no terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, em 1º de outubro de 1997. Carybé deixou mais de cinco mil trabalhos, entre pinturas, desenhos, esculturas e esboços. Ele também fez algumas capas de livros para Gabriel García Márquez (entre eles, Cem Anos de Solidão), Mário Vargas Llosa e Pierre Verger. Quando morava na Argentina, trabalhou uma temporada com o escritor Júlio Cortázar. Em parceria com Jorge Amado, Carybé escreveu os livros Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia. Foi inspirado no amigo que Jorge Amado escreveu o livro O Capeta Carybé.

A arte de Carybé é a memória viva da Bahia, que transcendem o tempo. Suas obras, que na maioria exaltam a herança do povo baiano e foram expostas mundo afora. Pintou em diversos locais, como nos murais do aeroporto de Nova York e Londres. Ilustrou obras de Pierre Verger, Gabriel Garcia Márquez, Mário de Andrade, Walt Whitman, Rubem Braga e de seu grande amigo Jorge Amado.

Seu nome de batismo é Hector Julio Páride Bernabó, nasceu em 06 de fevereiro  de 1911,  na cidade Lanús, no subúrbio de Buenos Aires. Há duas versões para seu apelido Carybé, extraído de seu mingau predileto. Numa outra versão, que quando era escoteiro pertencia a uma patrulha na qual todos tinham nomes de peixes e o seu era carybé, ou seja, piranha.

Painéis e murais

Entre esculturas, painéis e desenhos, ele fez esboços, cenas de filmes, como o Cangaceiro, de 1953, para qual desenhou cenários, figurinos. Pintou murais, como no Aeroporto Internacional de Miami que recebeu dois painéis do artista.  Mesmo sendo um artista do mundo, sua paixão era a Bahia.

Um de seus trabalhos mais notáveis foi o mural com 27 esculturas representando os orixás dos candomblés baianos, até hoje cultuados. São pranchas de madeira de cedro entalhadas, levando incrustações de ouro, prata, búzios da costa, cobre, latão, vidros e ferro, conforme a simbologia do culto.

No painel, a imagem mais marcante é de Yemanjá. Para não passar despercebido, um city tour pelas obras de rua: quem passa pela Djalma Dutra, pode ver os signos do zodíaco esculpidos na fachada da Tribuna da Bahia. Em frente ao Shopping Iguatemi, uma homenagem às mães baianas, a escultura de bronze, uma mulher carregando uma criança, de 1984. Na Assembleia Legislativa, um mural de concreto, remete à nossa história, com a chegada dos portugueses, de 1973.

Mais adiante, na Secretária da Fazenda, outra escultura. Na ala dos negócios, no centro Empresarial Iguatemi, no hall, uma escultura de óleo sobre madeira. Pintou índios na parede, para decorar o antigo Cine Guarany, no espaço Unibanco de Cinema Glauber Rocha, na Praça Castro Alves em 1953. No bairro da Caixa D’água, no Centro Educacional Carneiro Ribeiro, há painéis de 1950 – 1953.

Já no Comércio, a fachada do Edifício Cidade de Ilhéus é adornado pela pintura de um índio e seu cachimbo, de 1956, uma das mais antigas, desse tour. No Banco do Brasil, no Comércio, orixás e bichos, esculpidos em milhares de azulejos, adornam a fachada do banco. Na Rua Chile, no Edifício Bráulio Xavier, há um mural de concreto, de 1964, representando a chegada dos portugueses, esse era um dos temas recorrentes do artista. Uma de suas obras-prima que engrandece Salvador é o famoso Mural dos Orixás, em madeira, feito sob encomenda para o Banco da Bahia. A outra está no Pelourinho, na Casa de Jorge Amado, onde também tem um mural de concreto de 1987. Há três gradis de ferro na cidade com os desenhos de Carybé.

As que cercam o jardim da Piedade, de 1997. Uma de suas últimas obras, antes de morrer, foi o gradil na entrada do Museu de Arte Moderna. Assim como um mural, no parque das esculturas, em que mesmo sendo de concreto, as figuras “dançam”. E as da Praça Campo Grande, que é toda contornada com desenhos de pássaros e flores, essa ele morreu sem apreciar, instalada em 2003.