40 Anos

Flahes da vida cultural e artística na Bahia, nas décadas de 50 e 60

Década de 60. A década da Tropicália, do protesto, do Festival Internacional da Canção, a década de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. Os estudantes estavam nas ruas, os artistas explodiam em cores, formas e sons. Surgia uma nova geração, despontando em exposições, museus e galerias.
Foi também nessa década que a arte primitiva esteve em evidência, com sala especial nas bienais, apresentando trabalhos de Cardoso e Silva, Willys, João Alves, Pedroso, Lucidio Lopes, Manoel Bonfim e Ema Vale. A pulsação artística era tão forte na Bahia que vários artistas de outros estados aqui vieram se fixar, como Adam Firnekaes, Betty King, Floriano Teixeira, Leonardo Alencar, Eckemberger e Lênio Braga.
A década da ousadia e da contradição. A censura reprimindo tantas formas de expressão e o espírito inquieto dos artistas em busca da contemporaneidade, motivou uma efervescência cultural que marcaria a história.
 
CENSURA- A década de 60 foi importante para as artes baianas, notadamente, pela realização de acontecimentos culturais, como as duas bienais nacionais, ocorridas em 1966 e 1968. As bienais trouxeram à Bahia, artistas de várias partes do País, inclusive a vanguarda da época, e também revelou a qualidade de inúmeros artistas baiano.
A 1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas, inaugurada em dezembro de 1966, conhecida como a Bienal da Bahia, ocorreu no Convento do Carmo. Foi promovida por iniciativa conjunta do Governo do Estado e dos artistas baianos Juarez Paraíso, Chico Liberato e Riolan Coutinho. Reuniu artistas de variadas procedências regionais, revelando o compromisso com a divulgação de correntes artísticas díspares, como ficou atestado na premiação: Lygia Clark, Rubens Gerchman, Helio Oiticica e Rubem Valentim.
O fechamento do regime político em fins dos anos 1960 – coroando o golpe militar de 1964 – provoca a forte censura às manifestações artísticas e a perseguição a artistas e intelectuais.
A Segunda Bienal de Artes Plásticas, inaugurada em dezembro de 1968, no Convento da Lapa, sofreu de perto as consequências da ditadura militar e foi fechada por um mês, no dia seguinte à sua inauguração. Dez das obras expostas foram confiscadas antes da reabertura, consideradas “subversivas”.
Dignas de refêrencias elogiosas, nesta Bienal, foram as salas especiais de Artesanato e Arte Popular da Bahia, de Fotografia e de Arquitetura. As salas especiais foram ocupadas por Antonio Bandeira, Ana Letícia, Roberto Magalhães, João Câmara, Fernando Jackson, Gilvan Samico, Carlos Scliar e Nelson Leirner. Nas salas gerais figuraram importantes artistas de vários estados do pais, além dos baianos que foram destaques, como Chico Liberato (prêmio na categoria objeto) e Sonia Castro (premio na categoria gravura).

ANJO AZUL - Vale a pena lembrar a importância da critica de arte, como incentivadora à produção artística e a contribuição de Jose Valadares, Wilson Rocha, Romano Galeffi, Matilde Matos, Antonio Celestino e Odorico Tavares, na sua coluna “Rosa dos Ventos”. De grande importância foi o papel exercido pelas galerias, na afirmação de um mercado de arte, e no surgimento de muitos artistas. A primeira foi a Oxumaré, criada na década anterior, por Carlos Eduardo da Rocha, mixto de “marchand” e critico de arte. Em seguida, a “Bazarte” – ponto de encontro, e atelier de muitos artistas iniciantes, incentivados pelo seu proprietário conhecido como “seu Castro” (José Marques Castro); a Galeria Manuel Querino, a do Instituto Cultural Brasil Alemanha – ICBA, e a Galeria Convivium, dirigida por Juarez Paraíso e pela jovem artista Liana Bloisi. Logo a seguir, em 1970, surgiu a Galeria Canizares como uma extensão da Escola de Belas Artes.
Não posso esquecer de conceitualizar, neste contexto, a existência do “Anjo Azul”, um centro de “criação artística”, simultaneamente bar – onde se reuniam intelectuais – e galeria de arte. Suas salas eram decoradas com painéis de Carlos Bastos e no terraço aberto exibia escultura de Mario Cravo Júnior.
Foi ainda nos anos 60, que se fundou a Associação Artistas Plásticos Modernos na Bahia, e a criação de novos cursos na Escola de Belas Artes. Em 1969, deu-se a formação do Grupo Etsedrom.
É preciso salientar o papel de algumas instituições culturais como o ICBA, com os projetos Interarte I e II, onde jovens artistas eram convidados a criar novas formas de expressão.
Abro parênteses para retroceder no tempo, trazendo acontecimentos importantes que muito contribuíram para o desenvolvimento cultural e artístico na Bahia. Segundo Antonio Risério, “entre o final da década de 1940 e o inicio de 1960, a Bahia se abriu a um considerável fluxo de informações, que iria desembocar, adiante, em movimentos que, como o Cinema Novo e a Tropicália, alterariam definitivamente o panorama cultural brasileiro. Aconteceu ali, no horizonte até então acanhado da província, a coincidência entre o desejo de fazer a existência de condições objetivas e a presença de pessoas capazes de tocar o barco. Além disso a movimentação mobilizava levas geracionais diversas, do Reitor Edgard Santos ao estudante Glauber Rocha”.

Museu de Arte Sacra

À frente da Universidade da Bahia, Edgard Santos foi responsável pelos mais importantes acontecimentos artísticos, como a criação da Escola de Teatro, dirigida magistralmente por Martim Gonçalves, responsável pelas montagens teatrais de Bertolt Brecht; o Seminário de Música, reunindo entre 1954 e 1963, H. J. Koellreuter, Walter Smetak e Ernest Widmer, que trazem as contribuições do dodecafonismo e realizam experiências de vanguarda, como as plásticas sonoras idealizadas por Smetack, exibidas em eventos em que os músicos “tocam esculturas”.
Sugiram ainda a Escola de Dança, criada em 1956, a primeira de nível superior no pais, tendo a frente a polonesa Yanka Rudz, uma das pioneiras da dança moderna no Brasil; o Clube do Cinema e as aulas de Walter Silveira formando gerações de realizadores entre eles, Glauber Rocha. A criação, em 1959, do Museu de Arte Sacra no antigo Convento e Igreja de Santa Tereza, onde foi instalado um dos mais importantes museus da América Latina, pelo seu riquíssimo acervo de arte religiosa. O beneditino Don Clemente da Silva Nigra, seu 1º diretor, emprestou relevante contribuição durante os treze anos (1959/1972) que esteve a frente do museu.
A centralidade da Universidade nesta série de momentos corresponde naturalmente, à centralidade da figura do reitor Edgard Santos.
Nesta mesma época (em 1958) havia chegado a Salvador a arquiteta Lina Bo Bardi, convidada pela Universidade para dar um curso de Teoria da Arquitetura, quando é chamada, pelo então governador Juracy Magalhães, para trabalhar na implantação do Museu de Arte Moderna. Inaugurado em janeiro de 1960, em sede provisória, no foyer do Teatro Castro Alves, somente em novembro de 1963 mudou-se para o Solar do Unhão inteiramente restaurado segundo projeto de Lina Bo Bardi. O novo Museu do Unhão foi inaugurado com uma grande exposição de Arte Popular Nordestina e uma coletiva de artistas do Nordeste.
Em 1964, após o Golpe Militar, Lina foi demitida. Posteriormente, em 1966, os dois museus foram unificados sob o nome de Museu de Arte Moderna da Bahia. O patrimônio do MAM começava a ser instituído, com a doação de 87 obras de artistas brasileiros modernistas,  provenientes do acervo do Museu do Estado, hoje denominado Museu de Arte da Bahia.
Nos anos 60, na cidade do Salvador, já haviam as marcas dos artistas que integraram o movimento modernista decorando prédios públicos e privados – Mario Cravo, Genaro de Carvalho, Carlos Bastos, Carybé, Jenner Augusto, Rubem Valentim e Lygia Sampaio.
Neste sentido, muito contribuiu o Governo de Otávio Mangabeira (1947-1951) trazendo de volta à Bahia, alguns dos seus intelectuais mais capacitados, entre eles, Anísio Teixeira, que deixou sua função na Unesco, para ocupar a Secretaria de Educação e Saúde. Quando Dr. Anísio mandou construir o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, entregou o projeto arquitetônico a Diógenes Rebouças e, encomendou murais a Mario Cravo, Carybé, Jenner Augusto e Mª Célia Amado Calmon. No Hotel da Bahia, Genaro de Carvalho executou vários murais para decorar o salão do 1º andar, o saguão da entrada e o restaurante, (único existente). No terraço do Edifício Caramaru, na cidade baixa, cujo jardim foi projetado por Burle Marx, encontra-se a escultura “Orfeu” de Mario Cravo (1951) e muito, próximo, no Edif. Cidade do Salvador um grande painel de Carybé (1953) decora o hall de entrada. Em outro prédio, em Ondina, Jenner mostrava o seu talento de pintor, num grande painel de azulejo (1951).

Conceito de memória faz surgir museus

Curiosamente, até a 1ª metade do séc. XX (1959), só existiam, na Bahia, pouquíssimos museus, e segundo o conceito da época, eram “lugares de memória” ou “depósitos do passado” que apenas colecionavam e conservavam, os testemunhos materiais do homem e do seu ambiente.
O mais antigo de todos – o Museu de Arte da Bahia – fundada em 1919, como seção anexa do Arquivo Público, voltado para arte e história. Somente em 1931 veio a ter sua primeira sede, no Campo Grande, abrigando a Pinacoteca do Estado, com a coleção de pinturas do médico J. Abott.
O Museu do Instituto Feminino, criado por D. Henriqueta Catarino, composto com duas importantes coleções, a de arte popular (1929) e a de arte Sacra (1933).
Eram ainda denominados de “museus”, o Instituto Nina Rodrigues, com seções de medicina legal e antropologia, ligado a Faculdade de Medicina; o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que tinha como finalidade reunir “tudo quanto possa contribuir para a conservação das nossas tradições e favorecer o culto do passado”. E a casa-museu Rui Barbosa, inaugurada em 1949.
As igrejas e conventos, com suas coleções de arte religiosa, cumpriam um pouco esse papel, a exemplo da Catedral Basílica, dos Conventos do Carmo e do Desterro, das Igrejas da Conceição da Praia e do Bonfim.
Das coleções particulares, a única transformada em museu foi a de Carlos Costa Pinto, preciosa coleção, com cerca de 3.200 peças, constituída ao longo da vida. Após a sua morte, a viúva D. Margarida Costa Pinto, realizou o sonho do marido, inaugurando, em novembro de 1969, na casa do Corredor da Vitória, o belo museu.
Procurei reconstituir, em pinceladas impressionistas, o cenário artístico e cultural da Bahia, nas décadas de 50 e 60, a fim de que o leitor possa imaginar o contexto histórico da época, em que foi fundado o jornal “A Tribuna da Bahia”. Em 21 de outubro de 1969, em pleno período de regime militar, surge o 1º jornal com impressão off-set, moderno na sua fisionomia gráfica e sobretudo na sua linguagem, quebrando o padrão tradicional. Analisando esse efervescente período dos anos 50 e 60, com repercussão no Brasil e no mundo, somos levados a pensar quão importante foram os investimentos anteriores, realizados pelo Governo e pela Universidade, nas áreas de educação e cultura.
Este é o caminho que pode nos levar ao futuro.