Em meio à brutalidade dos conflitos armados, quando vidas são ceifadas e cidades reduzidas a escombros, emerge uma face repulsiva do ser humano: o uso ideológico e político da guerra.
Em tempos de informação instantânea e redes sociais hipertrofiadas, a dor alheia é muitas vezes instrumentalizada como munição retórica. A guerra deixa de ser compreendida como tragédia humana para se tornar palanque ideológico.
Os conflitos recentes, como a guerra entre Rússia e Ucrânia e o recrudescimento da violência no Oriente Médio, evidenciam essa tendência e revelam a hipocrisia de militantes que se calam quando os autores da barbárie retórica se alinham com sua ideologia.
Mortos são relativizados conforme o lado que ocupavam no campo de batalha ou a origem étnica que possuíam. Civis são transformados em "perda colateral" e soldados em peças descartáveis de uma narrativa maior.
O mais alarmante é a naturalização dessa lógica: a de que é aceitável que civis morram se o inimigo for "o outro lado". Pior: lamenta-se a baixa quantidade de mortes quando ocorrem do lado oposto, uma forma perversa de desumanização. Ainda mais baixo: muitas vezes essa lamentação vem disfarçada de pergunta. Repulsivo: a pergunta é feita por quem possui o poder de influenciar milhares (ou milhões) de pessoas desavisadas.
Condena-se veementemente a violência, mas apenas quando cometida por seus opositores políticos. Raptos, estupros, casas invadidas e seus moradores mortos a tiro ou facadas, idosos, mulheres e crianças feitos reféns são ocultados das narrativas dos que se alinham com os terroristas que praticaram esses crimes. Estes nunca entram na categoria de genocidio.
Esse comportamento não é apenas intelectualmente desonesto, é também moralmente inaceitável. A vida humana, independentemente da bandeira hasteada, não pode ser medida por simpatia ou antipatia ideológica. O sofrimento de uma criança ucraniana não é menor ou maior que o de uma criança da Faixa de Gaza, tampouco que o de uma criança israelense, iraniana ou russa. E, no entanto, essa hierarquização do sofrimento se repete com inquietante frequência.
Que lágrimas foram derramadas pelas crianças da Síria? Quem se indignou diantes das crianças mortas nos Sudão? Que passeatas foram organizadas para denunciar o massacre que sofreram e suas vidas destruídas?
Mais grave ainda é o silêncio cúmplice dos que, diante dessa instrumentalização ideológica, preferem não se posicionar. Seja por conveniência, medo de represálias ou puro alinhamento dissimulado, a omissão também mata. Ela permite que se naturalize um discurso em que vidas são descartáveis conforme a conveniência do momento.
Nos meios acadêmicos, midiáticos e institucionais, esse silêncio se reveste de sofisticação: discursos cuidadosamente redigidos que evitam condenações claras, artigos que "equilibram" argumentos com falsa neutralidade, pronunciamentos que relativizam ataques com termos como "contexto histórico" ou "complexidade do conflito". Não há neutralidade possível diante da morte de inocentes.
Condicionar a empatia à ideologia é um dos maiores fracassos morais da nossa era. A guerra é, por si só, um fracasso coletivo. Transformá-la em combustível para disputas ideológicas é descer ainda mais degraus na degradação ética. Se não somos capazes de chorar por todos os mortos, então nos tornamos piores do que aqueles que puxaram o gatilho.
A crítica à guerra e aos seus agentes deve ser firme, mas também honesta, coerente e humana. A militância que relativiza mortes perde toda a sua legitimidade. E o silêncio dos que poderiam condenar, mas preferem se omitir, é também uma forma de cumplicidade. Que tenhamos coragem, ao menos, de preservar nossa humanidade diante da barbárie.