Opinião

Soteropoética trielétrica

Em 1985 surge o movimento que passou a ser conhecido como Axé Music

Salvador é a capital do Brasil, cantada em verso e prosa desde seu primeiro poeta e tambem advogado brasileiro Gregório de Mattos e Guerra (1636 - 1696), a declamar seu amor a Bahia de Todos os Santos, suas mazelas e seus encantos: “Triste Bahia! Oh quão dessemelhante”.

O arquiteto, ator, escritor, encenador e dramaturgo brasileiro Edvard Passos de Santana Neto (c. 1978), recém doutor em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia, propôs o termo soteropoética em sua tese, a significar a poética nativa dos moradores da urbe, a englobar variados processos criativos de manifestações artísticas.

A cidade detentora do maior carnaval do mundo durante décadas, segundo o Guinness Book of Records, tambem foi agraciada com a criação de uma nova forma de espetáculo denominada Trio Elétrico, genial invenção brasileira de Adolpho Antônio Nascimento (1913 - 1978), eletrotécnico e instrumentista, e de Osmar Álvares Macedo (1923 - 1997), tambem instrumentista, além de mecânico e virtuoso bandolinista.

Foram apresentados em um programa radiofônico em 1938, e passaram a ser conhecidos pela alcunha Dupla Elétrica carnavalesca Dodô e Osmar, primeiramente por criarem o pau elétrico em 1942, que resultou na guitarra baiana, a animar salões de festas com frevos e marchinhas pernambucanos, e tempos depois por arrastar multidões em um mini palco improvisado numa fobica (um Ford T 1929 da família Macedo) em 1951 nas ruas da cidade.

O som, amplificado por dois potentes autofalantes tipo corneta, a frente e atrás do automóvel, era produzido por dois dos novos instrumentos elétricos, um mais grave e outro mais agudo, alimentados pela bateria do veículo, literalmente varrendo foliões por onde passava contando com apenas dois músicos, um negro e outro, branco (além do motorista).

No ano seguinte, o grupo passou a arrebatar multidões em cima de uma caminhonete Chrysler Fargo já com lâmpadas cênicas e um gerador a gasolina de 2 kVA, contando com a participação de Themístocles Aragão (c. 1923 - ?, um colega de escola de Macedo que tocava triolim, um violão tenor elétrico nem grave, nem agudo, i.e., intermediário), e assim formando o inesquecível Trio Elétrico, promovendo a sonoridade eletrizada na maior festa momesca de rua.

Até então os desfiles eram feitos em carros alegóricos seguidos por fanfarras de dezenas de músicos, ou ainda restrito aos clubes, que se assemelham aos camarotes atuais, ou seja, sem promover o alcance sonoro e visual de um palco itinerante a desfilar canções instrumentais frenéticas feitas a partir de então por apenas três pessoas.

Em 1953 já usavam de um caminhão, passaram a ser patrocinados pela empresa de refrigerantes Fratelli Vita dos irmãos empresários italianos Francesco Vita (1868 - 1944) e Giuseppe Vita (1869 - 1953), e voltaram a ser dupla, mas mantendo o nome que passou a ser eternizado pela história.

O patrocínio durou até 1957, sendo que o pai de Macedo tinha uma oficina na mesma rua, na altura do número 82, a poucos passos da fábrica dos Vita, no bairro da Calçada.

A revolução estética do trio elétrico apenas ocorreu devido ao empresário brasileiro Orlando Campos de Souza (1933 - 2018), conhecido como Orlando Tapajós, que aprimorou um antigo trio de Dodô e Osmar e o lançou com uma carroceria de enorme palco em 1961, após a decisão da Dupla Elétrica encerrar atividades no ano anterior. Mudanças continuaram a ocorrer, pois o carnaval trielétrico está sempre em movimento, passando a ser um grande negócio desde então.

O retorno de Dodô e Osmar ocorreu com o início da presença de Armando da Costa Macedo (n. 1953, mais conhecido como Armandinho) em 1974, músico e instrumentista brasileiro, além de virtuoso da guitarra baiana, e a formação de uma banda de baile em cima da carroceria de plataforma elevada já proposta por Tapajós, antecipando um suposto Jubileu de Prata do trio elétrico no ano seguinte, marcado pela inauguração da voz num trio, feito este do músico e compositor brasileiro Antônio Carlos Moreira Pires (1947 - 2020), mais conhecido como Moraes Moreira.

Ouça
Atrás do trio elétrico

Em 1985 surge o movimento que passou a ser conhecido como Axé Music, a partir do lançamento do disco “Magia” do cantor e compositor multi-instrumentista brasileiro Luiz César Pereira Caldas (n. 1963).

A história tambem registra um fato absolutamente relevante em termos científicos, pois Salvador foi um dos primeiros lugares do mundo a ser agraciada com a descoberta da luz elétrica, graças aos experimentos do médico, abolicionista e escritor brasileiro Malaquias Álvares dos Santos (1816 - 1856), ao anoitecer da véspera do dia dois de julho de 1855, data da Independência da Bahia, em uma das salas da Faculdade de Medicina, no Largo do Terreiro de Jesus, Pelourinho.

As primeiras faíscas do fogo elétrico, assim denominada a energia produzida por um arco elétrico, extraídas de potentes baterias elaboradas pelo genial baiano alumiavam mais que as velas, lampiões, lamparinas e fifós de casas sobressaindo ao breu, testemunhadas pela Santa Sé, cujo silêncio era apenas interrompido pelas baladas dos sinos das centenárias igrejas.

O carnaval representa a invenção peculiar de um povo por muitas vezes oprimido de um lugar, miscigenando música, costumes, saberes e cultura em engenhoso modo festivo, ainda que apenas numa efeméride, esta paradoxalmente secular.

Sotero é uma palavra grega que significa Salvador, e polis é outra, referindo-se à cidade. Deste modo, soteropolitano é o gentílico de quem nasce numa terra encantada, movida em todo carnaval por uma energia foliã trieletrizada feita de peculiar fogo elétrico, a bailar há pelo menos 75 anos, e imortalizada nos versos caetânicos de célebre canção a ferver multidões desde 1969: “atrás do trio elétrico / só não vai quem já morreu”. Uma sonoridade soteropoética trielétrica a magnetizar gerações foliãs.

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Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA