Está disponível para consulta e download o recém-lançado livro “Desmatamento e apropriação da água autorizados no Oeste da Bahia: uma política de Estado”, elaborado pelo Instituto Mãos da Terra (Imaterra) em colaboração com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). A pesquisa revela um panorama preocupante de devastação do Cerrado, que representa 80% do desmatamento permitido pelo governo estadual.
O estudo contou com o apoio do WWF-Brasil e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), no âmbito da Iniciativa “Tamo de Olho”, por meio do Projeto Cerrado Resiliente (Ceres), financiado pela União Europeia.
A pesquisa buscou avaliar as autorizações de supressão de vegetação nativa e outorgas de uso de recursos hídricos emitidas pelo órgão ambiental estadual no período de setembro de 2007 a setembro de 2022, em especial nas bacias hidrográficas dos rios Grande, Corrente e Carinhanha, na região Oeste da Bahia.
Além disso, o documento avaliou também a distribuição das áreas irrigadas por pivôs centrais no Oeste baiano; a relação do desmatamento autorizado com indicadores de desenvolvimento humano e os conflitos com as comunidades tradicionais da região; o papel do Estado no desmatamento e apropriação da água autorizados; e 26 processos de Autorização de Supressão da Vegetação (ASV). Foram ainda produzidos pareceres técnicos e representações com vistas a desdobramentos na esfera jurídica das irregularidades identificadas nos processos.
A pesquisa também propõe recomendações para qualificação da tomada de decisão relacionada à emissão de ASV e outorgas de recursos hídricos, e avanço na transparência e governança ambiental do agronegócio no Oeste da Bahia.
“É importante destacar que avaliamos não só o desmatamento autorizado, mas também a apropriação da água pelo agronegócio autorizada pelo Estado da Bahia, por meio do órgão ambiental estadual. Infelizmente, a apropriação da água pelo agronegócio ainda é um tema pouco visível na mídia, talvez devido a algumas dificuldades e limitações para acessar os dados”, destaca Margareth Maia, Diretora do Imaterra e coordenadora dos estudos.
De acordo com a pesquisadora, foram analisadas 5.126 portarias de ASV, emitidas entre setembro de 2007 a junho de 2021, pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) para todo o Estado da Bahia que juntas autorizaram o desmatamento de aproximadamente 1 milhão de hectares.
A pesquisa aponta que 95% do desmatamento total autorizado está destinado à atividades agrossilvopastoris. Das 835 portarias de outorga de recursos hídricos emitidas pelo Inema na região Oeste, que concedem 17 bilhões de litros de água por dia, emerge um panorama alarmante de destruição e apropriação de água no Cerrado, que abriga 80% do desmatamento permitido pelo Estado.
Do total de água outorgada, aproximadamente 4 bilhões de litros por dia correspondem a captações de água subterrânea no aquífero Urucuia, enquanto 13 bilhões de litros por dia se referem a captações de águas superficiais. A quantidade total de água autorizada pelo órgão ambiental estadual seria suficiente para abastecer, diariamente, sete vezes a população de todo o Estado da Bahia e nove vezes a população da cidade de São Paulo.
O estudo revela ainda que 80% do desmatamento total autorizado pelo Estado, cerca de 1 milhão de hectares, no período estudado ocorreu nas bacias dos rios Grande, Corrente, e Carinhanha, no Oeste da Bahia, região sob domínio do bioma Cerrado
“Todas as portarias de ASV e outorgas foram coletadas diretamente no Diário Oficial do Estado da Bahia (DOE), uma vez que não estão disponíveis no Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seia), conforme determina o art. 15, do Decreto Estadual Nº 14.024/2012, o que evidencia problemas na transparência e no acesso às informações públicas. Importante ressaltar, que muitas portarias de ASV apresentam dados inconsistentes, com diferentes tipos de erros ou mesmo com dados ausentes. Por exemplo: 66% das portarias de ASV não disponibilizam as coordenadas da poligonal e 42% não disponibilizam as coordenadas do ponto, o que dificulta a realização de análises e o controle social”, destaca Margareth Maia.
Para a pesquisadora a situação da apropriação da água atualmente no Oeste da Bahia é alarmante. O órgão ambiental estadual concedeu a outorga de 17 bilhões de litros de água/dia ao longo dos anos com base em uma rede de monitoramento de vazão dos rios e de estações fluviométricas limitada, que utiliza parâmetros técnicos que já estão defasados. “O processo de concessão de outorgas precisa ser mais qualificado e coerente com a realidade atual das bacias hidrográficas. E a tendência atual é que aumentem a pressão sobre as reservas de água do Aquífero Urucuia, sem que a sociedade tenha conhecimento da sua real capacidade de atendimento às outorgas”.
Outro dado alarmante é a quantidade de ASVs emitidas e a vazão de água outorgada: os resultados do estudo indicam um padrão de “liberação cartorial” e em larga escala de ASV e outorgas, sem o devido rigor, o que evidencia a existência de uma política de desmatamento e apropriação da água, sustentada por desregulamentações na legislação ambiental estadual, iniciadas a partir de dezembro de 2010, com a redução da participação e controle social. “Esse ‘modelo’ de gestão ambiental pública concentra riqueza, socializa passivos, potencializa a violência no campo e amplia as desigualdades e conflitos sociais – em especial com povos e comunidades tradicionais, o que ameaça a sua existência e seus modos de vida, e reduz a capacidade de o Estado de mitigar e se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas”, alerta.
Também foram constatados 21 tipos de irregularidades nos 26 processos de ASVs analisados, que autorizam a supressão de 82.840 ha na região Oeste da Bahia. A pesquisadora destaca que essas irregularidades abrangem tanto problemas detectados nas informações encaminhadas pelos empreendedores ao Inema, quanto na análise técnica realizada pelo órgão ambiental estadual. Entre as irregularidades verificadas, destacam-se:
1. ASVs autorizadas sem aprovação da Reserva Legal (RL) da propriedade e/ou do Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR)
2. O tamanho das Áreas de Preservação Permanente (APPs) declarado incorretamente no CEFIR
3. APPs da propriedade rural desmatadas ou degradadas, mas que não foram declaradas no CEFIR
4. RL da propriedade rural com áreas desmatadas ou degradadas, mas que não foram declaradas no CEFIR
5. Divergências entre as informações encaminhadas pelo empreendedor que foram validadas e aprovadas pelo Inema, e as informações checadas e validadas no estudo
6. Inventário Florestal integralmente ou parcialmente desenvolvido em área diferente da área solicitada ao Inema para supressão
7. Inventário Florestal com informações exigidas no Termo de Referência (TR) do Inema ausentes
8. Lista com espécies vegetais que não ocorrem no bioma ou no Estado da Bahia ou mesmo no Brasil
9. Uso de metodologias ilegais para afugentamento da fauna, a exemplo do uso de cães de caça, aprovadas pelo órgão ambiental estadual
De 1 milhão de hectares com autorização para desmatamento, 80% estão nas bacias dos rios Grande, Corrente, e Carinhanha, no Oeste da Bahia | Foto: Eduardo Cunha
Soluções
O livro indica mais de 80 recomendações que visam contribuir para o aprimoramento e a qualificação das políticas ambientais do Estado da Bahia e, em especial, das análises técnicas e os processos de tomada de decisão relacionados às ASVs e às outorgas de uso de recursos hídricos, entre as quais, destacam-se:
Estabelecer modelo de licenciamento ambiental que assegure a realização de análises integradas de cada fazenda (empreendimento) e cumulativas (conjunto de fazendas/empreendimentos) dos impactos decorrentes da implantação do empreendimento agroindustrial relacionados à supressão de vegetação nativa, captações de água (superficial e/ou subterrânea), uso de agrotóxicos e descarte de resíduos sólidos, tecnologias de acesso e armazenamento da água (por exemplo: piscinões), estruturas para fornecimento de energia, entre outros. O modelo de licenciamento ambiental deve promover uma maior transparência e controle social, uma gestão territorial da atividade agroindustrial, e a governança socioambiental sobre o agronegócio no Oeste do Estado.
Disponibilizar no Seia, de forma interativa e de fácil acesso à sociedade, as portarias de ASVs, outorgas de uso de recursos hídricos, e os arquivos em formato shapefile, abrangendo as áreas (polígonos) e pontos, do Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (Cefir), e revisar e validar todas as informações que integram as portarias de ASV e outorgas de recursos hídricos antes da sua disponibilização no Seia, para evitar a publicação de dados incorretos e ausência de informações.
Estabelecer como pré-requisito para concessão de autorizações para supressão da vegetação nativa (ASVs), a validação e aprovação da Reserva Legal (RL) e do respectivo Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (Cefir), por meio de imagens de satélite atualizadas da propriedade rural objeto da ASV e/ou inspeção em campo.
Utilizar imagens de satélite atuais (compatíveis com a data da análise técnica), com a melhor resolução e qualidade disponíveis, para validar todas as informações constantes no Cefir da propriedade rural objeto de ASV (a exemplo da Reserva Legal – RL e Áreas de Preservação Permanente – APP), e identificar eventuais irregularidades à luz da legislação (a exemplo de: presença de áreas abandonadas ou subutilizadas) na propriedade rural objeto de ASV, como pré-requisito para concessão da ASV.
Aprovar a localização das áreas de Reserva Legal prioritariamente no próprio imóvel rural quando existir vegetação nativa conservada ou a possibilidade/ viabilidade de promover a restauração da área.
Avaliar a situação fundiária dos imóveis rurais objeto de ASV e outorga, verificando a existência de ações discriminatórias de terras (nas quais as terras devolutas são identificadas e separadas das terras não devolutas), e/ou a existência de conflitos sociais com povos e comunidades tradicionais nas fazendas requerentes, explicitando a situação nos processos analisados, e não autorizando a emissão de ASVs em áreas com ações discriminatórias em curso.
Instituir, por ato normativo, procedimentos e critérios (coproduzidos entre a academia e técnicos) para análise técnica de viabilidade ambiental das ASVs, que contemplem o mapeamento das áreas prioritárias para conservação e uso sustentável da biodiversidade do Estado da Bahia e seus mapas associados, desenvolvido pelo World Wide Fund for Nature (WWF-Brasil, 2015), que estabelece classes de restrição por sub-bacias e estratégias de compensação, com vistas à conservação e o uso sustentável da biodiversidade e dos recursos hídricos no bioma Cerrado.
Ampliar a rede de monitoramento de vazão dos rios, com implantação de estações fluviométricas em locais estratégicos que englobam os principais rios das bacias dos rios Corrente, Grande e Carinhanha, especialmente próximas às grandes captações de fazendas com outorgas de recursos hídricos.
Estabelecer outorgas com variação sazonal, atualizar os parâmetros técnicos até os dias presentes, incluir a série histórica para cálculo do Q90, integrar as outorgas de águas superficiais e subterrâneas e o estudo das vazões ecológicas, conforme determinam os planos de bacias dos rios Grande e Corrente, para tornar o processo de concessão de outorgas mais qualificado e coerente com a realidade atual das bacias hidrográficas.
Implantar rede de monitoramento das reservas de água do Aquífero Urucuia e da sua capacidade de atendimento às outorgas subterrâneas concedidas pelo Inema, disponibilizando os resultados de forma acessível no Seia à sociedade.
Integrar as bases de dados fundiários do Incra e do Cefir, para reduzir a ocorrência de erros relacionados aos limites das propriedades rurais no Cefir e o uso deste para grilagem de terras.
Realizar fiscalizações planejadas a partir da análise integrada de dados e imagens de satélite, para identificar a existência de captações de água e desmatamentos irregulares e/ou ilegais nas bacias dos rios Corrente, Grande e Carinhanha.
Criar Unidades de Conservação de Proteção Integral e Uso Sustentável, que visem a preservação de ecossistemas do bioma Cerrado, de seus recursos hídricos e dos territórios e modos de vida dos povos e comunidades tradicionais na região Oeste do Estado da Bahia.