Opinião

A escravatura foi combatida em todas as épocas

As vítimas da escravatura nunca aceitaram a brutalidade que lhes era imposta

Em 1798, decorre em Salvador a Conjuração Bahiana

A escravatura constituiu o regime da mais extrema violência na História, implantado por poderes políticos despóticos, cujo despotismo se exercia também sobre seus próprios povos. Nenhuma sociedade apoiou violência extrema prolongada, no entanto, persistem correntes, em países onde existiram tais poderes, defendendo que era prática “natural”, consensual, que todos aceitavam. Alguns afirmam que, nessas épocas, nem era erro.

Alegam ter sido praticada em todas as civilizações ou continentes, ignorando as extensas regiões e comunidades que nunca praticaram escravatura e se defendiam contra ela, em uns casos pela fuga, em outros pelo confronto.

É claro que a existência de determinadas práticas não significa aceitação geral nem que sejam “naturais”. Por exemplo, delitos como roubo e assassinato, foram (e são) praticados também em todos os continentes. Por outro lado, se não era erro escravizar, estariam erradas as revoltas de escravos, tipo Espartacus, Mamelucos egípcios, Haiti, etc.

As vítimas da escravatura nunca aceitaram a brutalidade que lhes era imposta. A opinião das vítimas é a primeira a ser procurada antes de falar em “normalidade” ou “consenso”, tendo havido ainda opositores notáveis, nos próprios países com fases históricas despóticas.

Aristóteles, nascido 384 anos antes de Cristo, favorável à escravatura, reconhece explicitamente a existência, na Grécia de seu tempo, que outros não pensavam como ele e diziam: “Com efeito é somente em virtude da lei (nomos) que alguém é escravo e o outro é livre; mas, por natureza (pysei) não há nenhuma diferença: por isto, esta dominação não é justa (dikaion), porque ela é violência” (citação de Giuseppi Tossi)  Portanto, em Atenas, séculos antes de Cristo, havia opositores à escravatura e, sendo citados por Aristóteles, não eram casos isolados.

Aristóteles menciona ainda legisladores ou filósofos atenienses para quem não havia legitimidade nem na escravização de prisioneiros de guerra, prática comum e generalizada em Roma.

A escravatura romana dá-nos uma indicação estrutural sobre quem escravizava. Roma teve um total estimado da ordem dos dois milhões de escravos. Em certos momentos os escravos eram 10 a 15% da população, cerca de metade dos quais propriedade da elite, ou seja, em torno de 1,5% dos romanos. Se acrescentarmos a outra metade detida por plebeus mais afortunados, chegaremos com boa vontade a um máximo de 5% de escravizadores. Em ordem de grandeza, projeta indicação geral sobre a minoria implicada nas várias fases da escravização, a Norte e a Sul.

Pormenor importante da escravatura romana é ter sido composta quase toda por prisioneiros de guerra e pessoas com dívidas. Não que isto altere o estatuto, mas incidiria em opiniões posteriores sobre a prática em si e estabelece diferença com o tráfico transatlântico que, em menos tempo, causou a captura de mais de doze milhões de pessoas. Número representando, no mínimo, 10 vezes mais de vítimas, entre mortos na captura, no transporte, familiares e vizinhos dos capturados que conseguiram fugir.

Em janeiro de 1435, o Papa Eugénio IV, na Bula Sicut Dudum mandou libertar um grupo de pessoas das ilhas Canárias aprisionadas e escravizadas por tripulação de barco português.

O primeiro mercado da escravatura atlântica

Em 1444, sequestro mais numeroso é cometido na costa da Mauritânia, dando lugar ao primeiro mercado de escravos do Atlântico, em Lagos (sul de Portugal, a Lagos nigeriana ainda não tinha esse nome). O Núcleo Museológico, existente na principal praça dessa cidade, onde decorreu o leilão, fornece importantes dados e constitui notável iniciativa de transparência histórica e dignidade.

O cronista Gomes Eanes de Zurara, testemunha ocular, relatou esse leilão de agosto de 1444, ele próprio angustiado com o que chamou de impiedade. Além de outros detalhes, revela: D. Henrique, filho do rei João I de Portugal e iniciador da política de expansão marítimo-comercial, estava presente e recebeu um quinto dos lucros da venda; o povo de Lagos também lá estava em grande número. Quando se procedeu à entrega dos vendidos aos compradores, separando famílias, inclusive mães dos filhos, com a correspondente vaga de gritos lancinantes, Zurara deixou escrito que o povo local se “alvoroçou”. Hoje diríamos “agitou”. Zurara escreveu o possível naquele regime despótico, portanto, ficamos sem saber como se conteve a agitação.

Seja como fôr, a população do primeiro centro de venda de escravos no Atlântico, não achava aquilo “natural”. A Bula papal mencionada também não, e dois Papas seguintes vão insistir: Pio II, em 1462 enviou instruções aos Bispos contra o tráfico negreiro e Leão X (1513-1521) enviou documentos no mesmo sentido, especificamente aos reinos da Espanha e Portugal.

Em 1515, foi publicado em Coimbra o livro “A Arte da guerra no mar”, do padre e comandante de marinha Fernando Oliveira.  Uma das mais citadas passagens, diz: “E a mim me parece que seu cativeiro é bem desarrezoado quando é da nossa parte porque eles não nos ofendem, nem nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra não os podemos cativar, nem comprar”.

 No início do século seguinte, em janeiro de 1606 foi publicada a primeira edição de “Dom Quijote”, no qual Cervantes trabalha uma passagem de escravos algemados e deixa a interrogação, taticamente ingênua, “mas o rei tem escravos?”. É mais uma das atitudes possíveis face aos limites impostos pelo despotismo, muito significativas, inclusive em ditaduras mais recentes ou vigentes: textos assim ou panfletos clandestinos, são ações de indivíduos ou grupos mais corajosos num quadro social onde reina descontentamento.

O século XVII viu a estruturação do tráfico transatlântico, em bases esboçadas no século anterior, com aumento da capacidade de transporte acrescida e a ligação entre os litorais de Angola e Brasil assumir o primeiro lugar entre todas as rotas de escravos, virando até fator de primeiro plano nas rivalidades europeias sobre as margens do Atlântico Sul, tanto nas guerras – por exemplo, em Pernambuco – como na busca de acordos com autoridades africanas detentoras de escravatura em seus territórios. O historiador maliano Tidiane Diakité considera estes acordos como decisivos.

A demanda europeia de escravos pressionou em alta os mercados, maiores ou menores, pré-existentes em territórios sob poderes políticos fortes, partes dos atuais Mali (este já antes ligado à transaariana), Benin, Nigéria, Ghana, Congo e Angola.  Alguns portos de saída, como Cacheu (Guiné-Bissau), escoavam capturas feitas a alguns dias de marcha. No total, era menos de metade da superfície das atuais África do Oeste e Central. Na mais de metade restante, a maioria da população vivia em isolamento remoto, procurando isolamento ainda maior com o incremento da ameaça escravista. Aqui está uma vasta região do planeta à qual é impossível aplicar as afirmações de “escravatura por todo o mundo”.

O nível mais baixo de escravizações em Moçambique está relacionado à maior distância das Américas, menos presença de mercadores árabes que em outros pontos do Índico e, menos poderes políticos de alcance razoável facultavam menos interlocutores locais às empresas de traficantes.

Os referidos acordos são usados como argumento por personalidades europeias defensoras da banalização e consensualidade da escravatura naquela época. Porém, os acordos eram feitos entre grupos político-mercantis extremamente minoritários (europeus e africanos) e provocaram afastamento de populações inteiras tanto do alcance dessas autoridades cumplices, como de pontos do litoral. Além disso, cometer um crime com ajuda de cumplices não anula o mesmo, agrava, pois há associação de malfeitores.

No Brasil e na maior parte da América do Sul, também não havia escravatura antes da chegada do sistema colonial e a escravização de seus povos originais acabou por se tornar impraticável devido à resistência, apesar de ferozes ataques dos grupos escravizadores. Ao longo do século, foram se constituindo quilombos – chegarão a ultrapassar os mil – a população mestiça aumentará, inicialmente sob violência contra mulheres Negras e dos Povos Originais, em seguida garantindo sua própria reprodução, elemento demográfico poderoso em larga maioria oposto à escravatura.

Ainda no século XVII, novas decisões papais incidiram no casamento dos escravos católicos, com direito de viverem juntos mesmo se tivessem proprietários diferentes, desagradando estes e servindo de base a combates na Inquisição, como o da escrava Páscoa Vieira, pesquisado na Torre do Tombo pela historiadora francesa Charlotte de Castelnau-l’Estoille.

Este acúmulo de rejeições, fugas e protestos continuou em crescimento no século seguinte, com mais revoltas e radicalização de contestações, obrigando a medidas governamentais incompletas, mas em recuo sobre anteriores argumentos dos poderes europeus para legitimar a escravização. Em 1761, o Marquês de Pombal proibiu escravatura em Portugal e na Índia, mas manteve-a no Brasil e África. Á lei da Grécia antiga, contraria à natureza livre dos seres humanos, conforme já defendiam os inimigos gregos da escravatura, se acrescenta com Pombal, sem subterfúgios, o lucro financeiro como motivo.

Duas décadas antes, 1741 em Nova York, conforme os historiadores norte-americanos Peter Linebaugh e Marcus Rediker (no livro “A hidra de muitas cabeças”), autoridades e até mídia da época, assinalaram “o complô mais terrível e destrutivo já visto nestas bandas setentrionais da América”, “insurreição geral” para tomar a cidade. O ponto de partida foi o incêndio do principal quartel nova-iorquino no dia de São Patricio (que aboliu a escravatura na Irlanda), atribuído a um revolucionário chamado Quack e conduziu à prisão de centenas de pessoas negras e brancas, livres ou escravas, algumas delas condenadas à morte e executadas.

A importância da Conjuração Baiana

Em 1798, decorre em Salvador a Conjuração Bahiana, cujos integrantes demonstram a importância e posicionamento da população mestiça (sob a linguagem colonial de “pardos” até hoje). Influenciada pelos princípios da revolução francesa e pela insurreição haitiana, lutava pela abolição da escravatura junto com as reivindicações de independência e república. Conhecida também como “Revolta dos Alfaiates”, embora das 49 pessoas que a repressão conseguiu prender – mencionada na dissertação de mestrado de Florisvaldo Mattos na UFBA, 1972 - apenas seis fossem alfaiates, enquanto os soldados eram onze. Do total, seis eram escravos e quatro mulheres.

O médico Cipriano Barata, mais tarde personalidade importante da luta pela independência e oposição a Pedro I, aparece na investigação colonial como suspeito de ter estimulado o movimento. Suspeita nunca provada, até porque ele próprio conseguiu despistar os interrogadores, porém, a possibilidade do envolvimento de um intelectual nessa Conjuração popular é grande indicador do contexto baiano da época. Os quatro líderes da revolta, foram executados no ano seguinte, merecendo reparação histórica com destaque, pelo menos, idêntico ao da conspiração de Minas.

A revolução francesa aboliu a escravatura, restabelecida por Napoleão, mas em 1807 os abolicionistas britânicos, após longos anos de luta, conseguiram fazer aprovar no Parlamento o “Ato contra o comércio de escravos”. A escravatura passou abertamente à condição de crime, confirmando o que desde há séculos diziam seus inimigos. Os continuadores do tráfico eram criminosos, tal como, mais tarde, os responsáveis da sua substituição por trabalho forçado.

Foi um regime de longa duração que vitimou milhões de pessoas, sempre em benefício de pequenos segmentos. Por isso, nem as sociedades daquelas épocas, nem as atuais dos países ou territórios onde existiram escravizadores, podem ser responsabilizadas. Exceto os que legitimam ou justificam o crime, se transformando eles próprios em cúmplices.

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Jonuel Gonçalves é pesquisador associado no NEA/INEST da UFF (Niterói),ex-professor visitante da Uneb (Salvador) e está à frente do Blog do Jonuel