Carnaval / Cidade

Noite de festa na Senzala do
Barro Preto: o Ilê Aiyê vai sair

No Ilê Aiyê, tudo começa pelo pedido de licença e pela orientação dos Voduns

Foto: Revista Assum Preto
A pomba branca voa na noite sempre que o Ilê vai sair

Hoje é sábado de carnaval. Dia de você ver o mais belo dos belos fazer rufar os tambores, o corpo dançar e a voz expressar o canto de amor pela raça negra.  

Como no Ilê, nós pedimos licença aos Voduns para mostrar para você um pouco da universalidade desse bloco que também é escola para todos nós.

Leia, escute e veja a força, a beleza e a sabedoria do povo do Ilê, que este ano, entra na avenida reverenciando Mãe Hilda Jitolú, a raiz de onde brotou o Ilê, homenageando Agostinho Neto, o herói de Angola, ambos centenários; e celebrando 30 anos de Band'Erê.

Com o pedido de bênçãos às diversas nações, começamos esta reportagem: Kolofé, Motumbá,  Mukuiu, Mojubá.

No Ilê Aiyê, tudo começa pelo pedido de licença e pela orientação dos Voduns. No Terreiro de nação Jejê, sob a orientação de Mãe Hilda Jitolú, nasce em 1974, no Curuzu, no bairro da Liberdade, em Salvador da Bahia, o bloco afro mais antigo do Brasil. É neste mesmo lugar que todos os anos, no sábado de carnaval, o desfile tem início com o pedido de licença e bênçãos aos Voduns, de forma ritualística.  

Fiel aos seus, o Ilê sempre faz reverência, primeiramente, à casa onde nasceu. Esse movimento, por si, já indica a direção das ações do Ilê: nosso lugar é lindo, nossa gente é linda, nossa cultura é linda.?

A preparação para o momento de se mostrar no carnaval é um trabalho continuo durante todo ano. A Educação, na sede do Ilê Aiyê, é o princípio norteador de todas as ações. Mas, atenção: para o povo negro, a vida é holística, não fragmentada, então, está incluso no cotidiano educacional o cuidado com a espiritualidade, o movimento político e a celebração à vida - a festa.

Em 2023, temos a celebração do centenário de uma heroína do Brasil e um herói de Angola: Mãe Hilda Jitolú e Agostinho Neto. Ambos acreditavam, queriam e lutavam pela liberdade e respeito ao povo negro.

Ela, Mãe Hilda, a Doné fundadora do Ilê Axé Jitolú, descendente de escravos, pobre, mulher, sem ter tido acesso a escola, com a sua fala mansa e de poucas palavras, orientou com sabedoria, determinação e conhecimento, as decisões dos dirigentes do Bloco e Instituição Cultural Ilê Aiyê, cujas ações revolucionaram a forma do povo negro de se ver.

Partindo do Curuzu para todo o Brasil, o povo preto passou a bater no peito e a repetir o mantra do Ilê: "o mais belo dos belos, sou eu, sou eu", e surtiu efeito.

Hoje, o povo preto trocou o cabelo de chapinha pelas tranças e pelo black power. Trocou o lenço que escondia o cabelo desarrumado pelos turbantes que valorizam o rosto e fortalecem a ancestralidade; trocou a roupa de tons sóbrios pelas cores vibrantes, que representam a alegria que trazem no peito e nos fazem cantar, mesmo diante  de inúmeras dificuldades.

Tantas mudanças trouxe o Ilê: política, educacional, social, comportamental... tanto individualmente como coletivamente, que seria difícil contabilizar tudo que o Ilê é e representa para a nação brasileira. 

Angola é casa ancestral. É raiz que fortalece. É sabedoria de Nkisi

A conexão com Angola é visível no cotidiano do povo baiano. A ancestralidade e cultura se fazem presentes por várias vertentes: através do culto aos Nkisis, da influência na gastronomia,  no jeito de ser, na aparência física e, mais recentemente, na devoção a Mama Muxima, padroeira de Angola.

O país, que já foi homenageado anteriormente com o tema relacionado à Rainha Nginga, agora celebra e honra o centenário de Manguxi, como é carinhosamente chamado Agostinho Neto, o líder do Movimento Popular de Libertação de Angola e primeiro presidente do país.

Movido pelo ideal de liberdade, a poesia nacionalista de Agostinho Neto fala de sonhar e de lutar pela independência de seu país, refletindo o homem revolucionário e combatente da luta anticolonial. Licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa, em Portugal, mas tendo estudado na infância e na adolescência em Angola, Agostinho foi preso várias vezes, mas não se intimidava frente à vontade de ver o seu país livre. Em 1956, foi fundado o Movimento Popular para Libertação de Angola - MPLA que unia vários movimentos patrióticos. Daí em diante foram prisões, mortes, luta armada, até que o poeta chega ao cargo de 1º Presidente de Angola. 

"Com a 'Revolução dos Cravos' em Portugal e a derrocada do regime fascista de Salazar, continuado por Marcelo Caetano, em 25 de Abril de 1974, o MPLA considerou reunidas as condições mínimas indispensáveis, quer a nível interno, quer a nível externo, para assinar um acordo de cessar-fogo com o Governo Português, o que veio a acontecer em Outubro do mesmo ano.

Presidente Neto regressou à Luanda no dia 4 de Fevereiro de 1975, sendo alvo da mais grandiosa manifestação popular de que há memória em Angola. Dirige, pessoalmente, a partir desse momento toda a ação contra as múltiplas tentativas de impedir a independência de Angola, proclamando a Resistência Popular Generalizada."

 
A religiosidade é o maior patrimônio edificado pela cultura afro-brasileira, servindo também como força civilizatória desta cultura
-- Roger Bastide no livro O Candomblé da Bahia

Ilê Axé Jitolu

Situado na Rua do Curuzu,  na Liberdade, desde a sua criação, em 1950, o Ilê Axé Jitolu, fundado por Mãe Hilda, de tradição Jejê, continua da mesma forma que a Doné deixou em 2009, ano da sua passagem.

Nada foi mudado na reforma feita para celebrar o seu centenário, apenas as paredes e portas foram pintadas e as plantas ganharam novos vasos, nos conta com orgulho a sua a filha mais nova, dos seis filhos, D. Hildelice Benta dos Santos, a eleita pelos Voduns para dar continuidade ao trabalho de D. Hilda, a Doné da casa.. 

Com uma paz acolhedora, um passo manso e uma voz tranquila e doce, ela nos recebe e conta a história do Ilê, que também é da sua família genética e religiosa. A história é indissociável. Contudo, para participar das atividades propostas pelo Ilê Aiyê ou mesmo trabalhar na instituição, nunca foi obrigatório pertencer à religião de matriz africana.

Mulher de poucas palavras e sem letramento, Mãe Hilda era sábia, firme na defesa da cultura africana e, principalmente, acreditava e apoiava os caminhos escolhidos pelos os seus filhos, fossem de sangue, de santo ou da comunidade.

Foi dentro do Ilê Axé Jitolu, com o apoio de Mãe Hilda, que o Bloco Ilê Aiyê nasceu e se firmou. Tudo era feito dentro do terreiro. As reuniões, a venda dos carnês, a costura e a entrega das fantasias.

Fundado por Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, apelido que adquiriu na escola onde estudou, e Apolônio de Jesus, o Popó, o Ilê desfilou pela primeira vez em 1975 mostrando a cultura do povo negro e cantando a música de Paulinho Camafeu: "que bloco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que viemos cantar para você." Era o início da presença dos blocos afros durante o carnaval. 

Aliás, o Ilê Axé Jitolú é um lugar onde os sonhos são possíveis de serem realizados, basta estudar, trabalhar e confiar. 

Nos conta a Doné Hildelice, que a sua mãe tinha o sonho de abrir uma escola. E abriu. Com a ajuda das suas filhas, professoras, ela recebia as crianças ali mesmo no Terreiro. O barracão, lugar da cerimônia, era improvisado para as aulas. Para caber duas turmas, o espaço era dividido com tecidos. A força e a vontade de transformar vidas através da Educação era maior do que as dificuldades que as impediam de realizar o sonho de Mãe Hilda, que também era de todas as pessoas do Ilê. 

Aos pés dos Voduns, com a benção e conselhos de Mãe Hilda, e a ajuda de toda a família Jitolu, o Ilê Aiyê provocou mudanças significativas para na vida de muitas pessoas, mas principalmente, para o povo negro. 

Mãe Hilda

"Ícone da luta negra na Bahia, por várias vezes, Mãe Hilda, foi condecorada por seu valor. Em 02 de julho de 1968, foi condecorada com a medalha Dois de Julho e em 2001 recebeu das mãos do prefeito Antonio Imbassahy a simbólica chave da cidade para reinar durante o carnaval. Mãe Hilda foi também indicada para formar o grupo de mulheres que concorreram ao Prêmio Nobel da Paz.

Seus atributos foram ligados a luta pela valorização cultural, estética, racial e social da negritude baiana, especialmente as crianças e os jovens.

Em 12 de dezembro de 2005, recebeu da Secretaria Federal de Direitos Humanos o Premio Direitos Humanos. Seu valor dentro do Candomblé também lhe valeu convite pra fazer as obrigações de Zumbi dos Palmares em 1980 e nos 300 anos de Zumbi, em 1995, ocasiões em que compareceu a Serra da Barriga, em Alagoas, para proceder as tarefas religiosas"

O Ilê

O bloco Ilê Aiyê é mais do que um bloco de carnaval. É ação o ano inteiro. Para que as mulheres se sintam deusas e cantem, dancem e encantem com a sua beleza; ou um homem levante o seu tambor para o alto e toque o som que comanda a festa, é preciso sentir a beleza dentro de si primeiramente.

A beleza que vemos no exterior, quando o bloco passa no carnaval, é o reflexo do intenso trabalho de valorização do povo negro desenvolvido durante todo o ano, incansavelmente, todos os dias, por quase meio século.

São vários projetos desenvolvidos na Senzala do Barro Preto, sede do Ilê, que constroem a afirmação da beleza negra, oferecendo para o povo negro da Bahia opções de caminhos a seguir.

Tudo no Ilê é feito de maneira pensada e passa pela Educação, afinal, Mãe Hilda, uma educadora inata e visionária, já sonhava com projetos educacionais. A Escola Mãe Hilda é o projeto mais antigo do Ilê.

Os projetos educacionais do Ilê tem como um dos conceitos de base a interdisciplinaridade, onde o conteúdo de uma ação complementa a outra, criando uma rede de diálogo entre corpo, ritmo, mente e espiritualidade, tudo isto alinhado à construção de saberes que passam pelo campo da técnica, da política, dos conceitos, da filosofia,  da história, da ancestralidade e também da auto-história. A história de cada um. 

Existem vários projetos sendo desenvolvidos dentro da Senzala do Barro Preto voltados para a população negra de Salvador: A Escola Mãe Hilda, a Banda Erê, a Noite da Beleza Negra, o Festival de Música Negra, a Cartilha, os Cadernos de Educação, a Escola Profissionalizante , um projeto voltado para pessoas idosas e toda a preparação para o desfile do carnaval.