Chico Ribeiro Neto

Coisas que só acontecem no carnaval


Foto: Pixabay/Creative Commons

Na década de 60, em Salvador, os brigões e arruaceiros do Carnaval eram levados para a Secretaria de Segurança Pública, na Praça da Piedade, onde ficavam trancafiados até Quarta-Feira de Cinzas. Nesse dia, umas 11 horas, a Polícia soltava todo mundo de uma vez.

Constrangidos, os brigões tinham que passar por uma multidão de curiosos na entrada da SSP que iam ver a soltura geral. Era o bloco do “O que é que eu vou dizer em casa?”.

Alguns dos presos assim que respiravam a liberdade já paravam no primeiro bar da Piedade para tentar retomar o tempo perdido do Carnaval.

Fazer xixi no Carnaval, na década de 60, era uma luta. Não havia sanitário público. Os homens faziam em qualquer lugar, mas para as mulheres era mais difícil.

Os barraqueiros da Praça Castro Alves, ponto de maior concentração, faziam um cercadinho com as caixas de cerveja e as mulheres faziam ali, no chão mesmo, junto às garrafas de cerveja cheias.

Uma vez uma amiga foi num desses quadradinhos e enquanto se aliviava viu um bando de olhinhos entre os engradados de cerveja. Quando ela saiu cinco meninos fugiram correndo.

Foi na Castro Alves que uma amiga estava dançando com um cara, os dois bem animados, quando ele a convidou para ir até a Ladeira da Barroquinha: “Vamos ali que tenho um negócio pra lhe mostrar”

“Vixe, esse cara tá querendo ousadia”, pensou ela, que só queria dançar.

E o cara volta e meia insistia: “Vamos ali que tenho uma coisa boa pra nós dois”.

Ela acabou indo. Ele a chamou para um canto, levantou a mortalha e tirou algo da cintura: um saco plástico com duas coxas de frango assado e farofa: “Olha aqui o que tenho pra nós”.

“Coma à vontade, eu comi um acarajé nesse instante”, disse ela.

Todo Carnaval tem uma hora que dá um paradeiro geral, principalmente à tarde. Foi assim uma vez na Avenida Sete de Setembro: não passava nada, nem trio, bloco, nem afoxé, e o povo já agoniado. E eu também. Aí encontrei meu irmão Zé Carlos, tomamos uma num isopor e começamos a cantar marchinhas de Carnaval, cadenciados pelo bater das latinhas.

O número cresceu para oito, depois 30 pessoas, e o pequeno bloco desceu a Ladeira de São Bento cantando “Ô jardineira, por que estás tão triste?”.

O bloco das latinhas foi se encorpando e quando chegamos na Praça Castro Alves fizemos uma roda imensa, aí as pessoas já dançavam pelo meio, e aconteceu a brilhante orquestra de lata.

Aí chegou um trio.

“Arlequim está chorando pelo amor da Colombina/ no meio da multidão” (“Máscara Negra”, de Zé Kéti”).

A viúva de Deusdedith Pereira Matos (morto em 1966), dona Benedita Matos, reivindicava para o marido a autoria da letra da música “Máscara Negra”, lançada por Zé Kéti em 1967 e grande sucesso nos carnavais até hoje.

Pois bem, Zé Kéti, além de enfrentar toda a polêmica sobre a autoria da letra, ainda se deparou com uns críticos que viam defeitos na letra. Diziam que Arlequim e Pierrô são personagens da commedia dell’arte italiana e que quem chora é o Pierrô, com uma paixão não correspondida pela Colombina. O Arlequim, segundo eles, não é de chorar, mas de provocar choro nos outros.

E aí veio a resposta irada de Zé Kéti: “A música é minha, eu faço o Arlequim chorar e ficar apaixonado quando bem entender, desde que chore na minha música”. (Fonte: TelesToques, site oficial de José Teles).