Cinema

Mostra Histórica traz filmes raros com questões sobre racismo

Na 12ª Mostra Ecofalante de Cinema apresenta

Foto: Divulgação
Cartaz

A 12ª edição da Mostra Ecofalante de Cinema, que acontece em São Paulo de 1º a 14 de junho, com entrada franca, apresenta a Mostra Histórica dedicada ao tema “Fraturas (pós-)coloniais e as Lutas do Plantationoceno”, termo cunhado nos anos 2010 pelas teóricas norte-americanas Donna Haraway e Anna Tsing, se contrapõe ao difundido Antropoceno ao reconhecer os fundamentos coloniais e escravagistas da globalização e do sistema socioeconômico hegemônico hoje.

Em 2023, a Mostra Histórica discute as fraturas e as lutas decorrentes do colonialismo a partir de uma série de filmes realizados entre 1966 e 1984. Estão reunidos, de maneira inédita, 17 títulos icônicos realizados no calor das lutas decoloniais  e anti-imperialistas. Este era o momento em que meia centena de países do continente africano alcançaram a independência e em que, na América Latina, era produzido um importante cinema militante e de denúncia social. As obras trazem a assinatura de importantes nomes da cinematografia africana e latino-americana, ao lado do coletivo ativista norte-americano Newsreel.

Banido por muitos anos na França e proibido no Brasil na época da ditadura militar, “A Batalha de Argel” se passa nos anos 1950, quando o medo e a violência aumentam à medida que o povo da capital da Argélia luta pela independência do governo francês. Título mais marcante da filmografia do diretor italiano Gillo Pontecorvo (1919-2006), foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, melhor diretor e melhor roteiro. No Festival de Veneza, venceu o prêmio de melhor filme e o prêmio da crítica internacional. A Mostra Ecofalante exibe sua versão restaurada em 4K pela Cinemateca de Bolonha e o Instituto Luce Cinecittà. 

O cineasta mexicano Paul Leduc (1942-2020) – de “Frida, Natureza Viva” (1983) – expõe em “Etnocídio” (1977) o fenômeno de aculturação da minoria Otomi de forma crítica e irônica. Segundo a crítica, o longa apresenta uma verdadeira cartilha de um assassinato cultural.

Considerado um dos grandes clássicos do cinema brasileiro, “Cabra Marcado para Morrer” (1982) promove a busca dos personagens de um filme sobre a morte de um líder camponês que teve suas filmagens interrompidas quando do golpe militar de 1964 no Brasil. Vencedor dos prêmios FIPRESCI do Fórum no Festival de Berlim, o longa consagrou o diretor Eduardo Coutinho (1933-2014).

Premiado no Festival de Berlim e selecionado para o Festival de Cannes, “Emitaï” (1971) mostra a revolta dos habitantes de uma comunidade no Senegal contra o governo colonial francês que, durante a Segunda Guerra Mundial, lhes impõe a entrega de sua safra de arroz para envio ao fronte de batalha. São principalmente as mulheres que farão resistência às imposições imperialistas. Nome maior do cinema senegalês e considerado um dos pioneiros do cinema africano, Ousmane Sembène (1923-2007) mostra neste filme seu cinema politicamente empenhado e de viés feminista.  

Community Control

Duas obras exemplificam a atuação do coletivo Newsreel, grupo de cineastas norte-americanos radicais que criou uma rede de distribuição e criação no final da década de 1960. “Community Control” (1969) documenta uma das lutas mais importantes pela educação: em 1968, sob intensa pressão das comunidades negra e latina, o estado de Nova York escolheu três distritos escolares da cidade para fazer parte de um experimento de educação administrada. Já em “El Pueblo se Levanta” (1971), o foco são as condições para os porto-riquenhos emigrados para os Estados Unidos, que atingiam o ponto de ebulição. 

Um dos dois únicos filmes dirigidos pela romancista argelina Assia Djebar (1936-2015), “A Zerda e os Cantos do Esquecimento” (1982) é um ensaio poético que reúne imagens de arquivo da cerimônia Zerda tal como filmada pelo olhar dos colonizadores a fim de ressignificá-las. Exibida em versão restaurada, a obra foi vencedora de menção honrosa do Prêmio OCIC do Fórum no Festival de Berlim. 

O brasileiro Murilo Salles (de “Nome Próprio”, 2007) foi a Moçambique no início da carreira e lá realizou “Estas São as Armas” (1978) para o então recém fundado Instituto Nacional de Cinema do país. A obra, que reúne filmagens e imagens de arquivo,  relata a luta da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) contra o colonialismo de Portugal e denuncia a invasão do país, naquele momento, pelo exército da Rodésia, então ao lado dos países imperialistas. 

Premiada no Festival de Berlim por seus filmes “Carta Camponesa” (1976) e “Fad'jal” (1979), a cultuada cineasta senegalesa recém falecida Safi Faye (1943-2023) traz em “Eu, Sua Mãe” (1980) as experiências cotidianas de um estudante senegalês em Berlim Ocidental.

“Festival Pan-africano de Argel” (1969) reúne imagens do 1º Festival Cultural Pan-Africano ocorrido capital da Argélia, com participações do ativista político Eldrige Cleaver (1935-1998) e outros integrantes do grupo revolucionário Panteras Negras, e da cantora Miriam Makeba (1932-2008). O filme, dirigido pelo fotógrafo William Klein (1926-2022), registra um momento chave de celebração do pan-africanismo, na ocasião em que muitos países da África ainda encontravam-se em plena guerra colonial.

Uma reconstituição documental do massacre de mineiros de estanho grevistas ordenado pelo governo é abordado em “El Coraje del Pueblo” (1971), obra vencedora do Prêmio OCIC do Fórum no Festival de Berlim. Seu diretor, Jorge Sanjinés, é o mais importante cineasta da Bolívia, conhecido por sua filmografia de denúncia a serviço do povo indígena.

Clássico do cinema político latino-americano dos anos 1970, a animação “Na Selva Há Muito por Fazer” (1974), do uruguaio Walter Tournier, é uma alegoria sobre o imperialismo, a repressão e a perseguição política em curso no Uruguai, naquele momento. Inspirado no conto homônimo de Maurício Gatti (à época, ele mesmo um preso político), este foi o último filme produzido pelo grupo Cinemateca del Tercer Mundo, que seria desfeito logo após o golpe militar uruguaio de 1974.

“Nuestra Voz de Tierra, Memoria y Futuro” (1982) é exemplar da produção engajada do casal de diretores colombianos Marta Rodríguez e Jorge Silva (1941-1987). O filme registra a luta da comunidade indígena Coconuco pela preservação de seu território. A versão exibida pela mostra foi restaurada pelo Instituto Arsenal, de Berlim. 

Exibido no Festival de Berlim deste ano, “I Heard It through the Grapevine” (1981), de Dick Fontaine, é uma verdadeira preciosidade recentemente redescoberta graças a uma restauração realizada pelo Harvard Film Archive – esta é a versão do filme que será exibida pela 12ª Mostra Ecofalante de Cinema. O documentário acompanha o aclamado escritor crítico do “sonho americano” James Baldwin (1924-1987) quando ele revista locais históricos e emblemáticos para a luta do povo negro americano e faz um balanço das lutas contra o racismo e das injustiças arbitrárias cometidas contra essa população no país. 

Vladimir Carvalho, cineasta brasileiro de importante carreira no cinema documental, focaliza no curta-metragem “Quilombo” (1975) a atividade de uma comunidade negra remanescente de um antigo quilombo no município de Luziânia, em Goiás, nos arredores de Brasília.

Já “Terra dos Índios”, realizado em 1979 por Zelito Viana, parte de uma reunião de caciques para mostrar os problemas das comunidades indígenas em todo o Brasil. Narrado por Fernanda Montenegro, o filme reúne entrevista de Darcy Ribeiro (1922-1997) e depoimentos de Ângelo Kretã, Mário Juruna e Marçal de Souza Tupã.

Por sua vez, “O Tigre e a Gazela” (1977) justapõe a pobreza e a dignidade de personagens que vivem em ruas e praças a textos de Frantz Fanon (1925-1961), importante escritor negro, militante político da Martinica que participou da libertação da Argélia. O curta-metragem é assinado pelo cineasta e diretor de fotografia Aloysio Raulino (1947-2013), que desenvolveu larga carreira de documentarista.

A Mostra Ecofalante de Cinema é viabilizada por meio da Lei de Incentivo à Cultura. Ela tem patrocínio da White Martins, da Valgroup, do Mercado Livre e da Spcine, empresa pública de fomento ao audiovisual vinculada à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e apoio da Evonik e da Drogasil. Tem apoio institucional do WWF-Brasil, da Cinemateca da Embaixada da França no Brasil, do Institut Français e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. A produção é da Doc & Outras Coisas e a coprodução é da Química Cultural. A realização é da Ecofalante e do Ministério da Cultura.