“Às ideias, que não se pode prender – ou matar”. Com a sugestiva dedicatória, chega às livrarias “Histórias”, da jornalista e escritora Suzana Varjão, pequena série composta pelos livros “Diário de Uma Louca” e “Divagações”.
O lançamento é nacional, mas as publicações serão aprese
ntadas ao público em Salvador durante evento-âncora presencial, no Museu de Arte Moderna da Bahia, às 18 horas do próximo dia 17/11. Os volumes saem pela editora Caramurê, com apoio da Fundação Pedro Calmon (FPC) e da Midas Produções Artísticas e em parceria com a Academia de Letras da Bahia, a Associação Baiana de Imprensa e o Leiamais, entre outras.
Nesta entrevista, Varjão fala sobre a obra, escrita “durante o auge do desastre político-humanitário que atingiu o Brasil”. Confira!
LM - Do que se trata “Histórias”?
SV - “Histórias” é uma pequena série de dois volumes, intitulados “Diário de uma louca” e “Divagações”. Ambos reúnem narrativas curtas sobre a realidade sociopolítica da atualidade, tecidas com muita consciência dessa realidade, mas sem peso, usando ora do lirismo, ora da ironia, nostalgia, bom humor, nonsense... muito nonsense. No “Diário”, principalmente.
LM -É ficção ou jornalismo?
SV - O “Diário” situa-se no entrelugar do jornalismo e da ficção. Ficção na forma, jornalismo no conteúdo, porque todos os acontecimentos nele registrados, por mais absurdos que possam parecer, são verídicos. É meu rito de passagem para a literatura ficcional, para o exercício estético da linguagem escrita, que se concretiza em “Divagações”.
LM - Por que “Diário de uma louca”?
SV - Porque eu uso a pretensa debilidade mental da personagem para colocar o Brasil frente a frente com a própria insanidade. É como se fosse um truque com espelhos, em que a protagonista, vivendo um contexto criado para, por exemplo, fazer as pessoas acreditarem que a terra é plana, crê ter perdido, ela, a razão, por pensar diferente.
LM - Como surgiu a ideia do “Diário de uma louca”?
SV - A personagem surgiu há muitos anos, quando ainda editava o caderno de cultura do jornal A Tarde, fruto de meu espanto ante a loucura coletiva da sociedade, mas somente agora consegui dar-lhe vida, por meio desse diário fictício, porque essa insanidade ficou mais visível a partir de 2018, durante o auge do desastre político-humanitário que atingiu o Brasil, ao que se somou o tsunami da pandemia. Mas o estímulo para escrever as histórias dos livros, tanto do “Diário” quanto de “Divagações”, veio do convite para integrar o time de colunistas do portal Leiamais, feito por uma jornalista, Doris Pinheiro, não sei se você conhece (rsrsrs)...
LM - O “Diário” é dedicado “Às ideias, que não se pode prender, ou matar”. É referência política?
SV - Sim. Uma referência direta à ideia de justiça social, fraternidade, liberdade, catalisada por um homem, ou um nome, mas que vem de uma parte da sociedade brasileira que não está, felizmente, doente. O “Diário” é um manifesto contra a insensatez humana. É, portanto, por si só, um ato político.
LM - E “Divagações”? É ficção ou jornalismo?
SV - “Divagações” é ficção, mas reflete cotidianos de um país semicolonial, com suas disparidades, violências e opressões. Ou seja, é ficção, mas pautada em um contexto real, como toda narrativa do gênero. São diminutos retratos brasileiros, esboçados por quem perdeu a ingenuidade em relação à palavra e suas cargas simbólicas, que instituem, ou destituem, perversidades.
LM - Tem também cunho político?
SV - Ah, sim. De modo não tão direto quanto o “Diário”, mas é também um manifesto político-ideológico. Compreendi, ao longo de minha trajetória de trabalho no campo simbólico, que desumanismos e dominações em geral não podem ser enfrentados de uma única maneira. As formas e frentes de luta têm, necessariamente, que ser múltiplas, multidimensionais, como são essas perversidades. E um dos campos de luta mais efetivos é o da palavra.
LM - Ficção e política, como se dá essa junção?
SV - Narrativas formam mentalidades, que constroem realidades. E o lúdico fisga. Quanto mais prazerosa uma leitura, mais facilmente as mensagens são absorvidas, e as mentalidades, formadas. A literatura é prenhe de construções lúdicas que naturalizam perversidades, como os racismos, por exemplo. Aliás, desde a Antiguidade, desde a literatura religiosa, plena de protoracismos contra negros.
LM - A unidade da série seria então o conteúdo sociopolítico e humanitário?
SV - Sim, principalmente, porque os livros estampam a mentalidade escravocrata, os abusos, eugenias e coronelismos do Brasil, além das feridas que se abrem na psique dos violentados. Mas há uma unidade formal também. Foram escritos dentro de uma mesma técnica, do fluxo de consciência, transitando por ambiências físicas e psíquicas e explorando fronteiras entre ficções e realidades, que muitas vezes se mesclam, se fundem, se confundem...
LM - Como conseguiu tratar de temas tão sérios com leveza?
SV - Eu falo do espanto ante a banalização do mal, o renascimento do fascismo, a insensatez dos homens, mas também de esperança, de força, de capacidade de superação. E quase tudo com muito humor. Mesmo tratando de temas áridos, como quando uma personagem do “Diário” conta que o chefe do sanatório tinha chamado os números 1, 2, 3 e 4 de seu gabinete, para, juntos, sugeriram que, em vez de AI-5, seus apoiadores passassem a exaltar o E DAÍ-5!
Anote
Lançamento dos livros Diário de Uma Louca e Divagações
Data: 17 de novembro
Horário: 18h
Local: Museu de Arte Moderna da Bahia
Hora: 18h
Autora: Suzana Varjão
Editora: Caramurê
Suzana Varjão é uma jornalista baiana, cujo trabalho resultou em 28 prêmios de reportagem — a maioria, pela defesa de direitos humanos, temática de quatro de seus livros e de dezenas de artigos publicados em coletâneas e revistas do Brasil e da AL. Durante a maior parte de sua trajetória profissional, foi editora de cultura do jornal A Tarde (Salvador-BA), destacando-se ainda como crítica de teatro, ensaísta e cronista. A série “Histórias” marca sua estreia na ficção.
Trechos do Diários de Uma Louca
“Escoltadas por anjos e demônios, resolvemos seguir a marcha dos sem (sem habeas corpus, sem delação premiada, sem foro privilegiado, sem imunidade parlamentar...). Mais de 200 milhões de sombras, num caminho sem volta. Como a minha lucidez. E eu”.
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“Despertei no meio da noite com o vento gemendo na janela. Quando olhei pra fora, tive a impressão de que as trevas... riam! O susto só não foi maior porque observei que não estavam sorrindo pra nós. Estavam rindo de nós”.
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“Sonhei que não mais sonharíamos, porque os arquitetos de utopias estavam partindo — Catraca, catraca, catraca... Um a um, eles iam passando pela borboleta de ferro que separa os dois lados da vida. E íamos ficando cada vez mais tristes, nos sentindo cada vez mais órfãos. Eles, não. Eles estavam livres”.
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“Sandra disse que o chefe do sanatório resolveu minimizar as manifestações em prol do AI-5. Segundo minha irmã, ele chamou os números 1, 2, 3 e 4 de seu gabinete, e, juntos, sugeriram que, em vez de AI-5, os apoiadores agora exaltem o E DAÍ-5!”.
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“Saltei da cama, na esperança de rever o pequenino pássaro. Queria continuar o diálogo de ontem, que apesar de triste, havia serenado — mas não calado — meus sobressaltos [...]. Também falar do meu espanto ante a banalização do mal; o renascimento do fascismo; a insensatez dos homens. Pedir proteção. E um pouco de esperança”.
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“...eu consegui dar um cochilo, mas daí as orelhas os neurônios começaram a pinicar de um jeito, que eu não tive dúvida! Levantei, tasquei meus remédios na latrina e dei descarga! Vade retro, que meu juízo tarda, mas não... não... tá, pode até faltar, às vezes, mas quando não falta, sai de baixo!”.
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“Achei linda, a representação do anjo dela, mas nem deu tempo de elogiar, porque quando ela se virou, tinha dois chifres na testa e um tridente na mão! Na falta de água benta, tasquei água sanitária na tinhosa e bati a porta...”.
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Trechos de Divagações
“Lembra das sombras fantasmagóricas dançando nas paredes; da mão masculina apertando seu braço, puxando-a para fora da casa; do barranco de terra úmida e mato alto; do dedo indicador sobre os lábios; e da ponta da faca encostada na barriga. Nada mais”.
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“Afasta-se do socavão, enquanto os sons vão retornando aos poucos, como chuviscos, misturando-se a uma profusão de cores e movimentos, até formarem um turbilhão contraditoriamente estático e vivo; ensurdecedor e mudo, como no quadro "O Grito", de Edvard Munch”.
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“As batidas do coração disparam, enquanto observa as ondas arrebentando nas falésias, o fluxo e refluxo incessante das águas, os restos de uma embarcação sendo arremessados contra os rochedos. Em meio aos destroços, uma andorinha morta”.
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"Vontade de sentar a mãe no colo e dizer que tinha aprendido outras coisas além daquelas que ela ensinara — por exemplo, que religiões são esforços humanos de racionalização da espiritualidade. E os homens são falhos, não são?”.
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“Diante dos seus, os olhos vidrados de Manoel — sua barba mal aparada e suja; o pedaço de palha deslocando-se lentamente de um canto a outro dos lábios e... o bacalhau, chicote maldito que lhe rasga a pele, causando dor tão extrema que, às vezes, o cérebro desliga, como agora”.
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“Já não escuta o ronco do motor da lancha. O ruído contínuo, invariável, anestesia os sentidos, libertando a mente, os medos, as amarras... E uma ideia vai tomando corpo dentro dela, enquanto nas franjas brancas de areia a paisagem inerte se repete, indefinidamente...”.
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“Chega a sentir náuseas ante a visão dos paralelepípedos pontilhados de confetes, a face semienterrada na lama... Era domingo, também. E chovia — água e sonhos escorrendo pelos bueiros...”.
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“O chiado característico do atrito de madeira contra madeira denuncia o abrir e fechar de gavetas no quarto de hóspedes abaixo do seu. São movimentos furtivos, de quem procura por algo que não sabe o que é, não sabe onde está, não lhe pertence, mas que irá obter, mesmo que para isso tenha que matar”.
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COMENTÁRIOS
Os textos reunidos na publicação foram postados de modo esparso, no Leiamais, alcançando a primeira colocação no ranking dos mais lidos do site noticioso e angariando comentários que denotam a receptividade do público leitor. Alguns extratos:
“Diário de uma louca”
“Adorei! Piti hoje falou pouco, mas, disse tudo, "deu no clavo", como dizem aqui na Espanha. Sandra, como sempre, com as suas, e você, arrebentando! Quando crescer quero escrever igual a você!” (Nize César).
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“Adoro os domingos quando leio o diário. Uma louca muito lúcida, a que escreve!” (Neusa Casaroto).
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“Massa! Hoje até a ONU sofreu... Seus textos ajudam a conviver com 'A' realidade. Obrigado” (Mario Jardim).
“Divagações”
“A história [o ônibus] é tão bem escrita que proporciona uma tela com sons e imagens em movimento” (Isabela Oliveira).
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“Achei a sua narrativa [em O sobrevivente] ousada e inovadora. Me lembrou muito Agualusa, escritor angolano, cujo estilo eu adoro” (Blande Viana).
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“Acabei de ler O sobrevivente. Vi e senti a cena. Parece um quadro! Você pinta quadros com as palavras. E pinta com precisão cirúrgica, exata, limpa!” (Maria Eunice Kalil).