Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) nos anos 1990 e maior referência do País em estudos sobre povos isolados, o sertanista Sydney Possuelo afirmou que a região do Vale do Javari (AM), onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips desapareceram, é marcada há décadas por conflito com criminosos, que recrudesceu nos últimos anos.
Em mais de 40 anos dedicados às causas indígenas, ele fez inúmeras vezes o trajeto no qual Pereira e Phillips foram vistos pela última vez. Possuelo avaliou que percorrer o trecho com apenas duas pessoas, e sem a presença de nativos, é algo arriscado, mas que isso pode estar ligado à falta de estrutura e de recursos para as ações de proteção dos territórios. É que indigenistas sacrificam a segurança para fazer economia, algo que ele mesmo admite ter feito. Quanto menos gente no barco, menor é o consumo de combustível.
"Algumas vezes, eu fiz isso, por questão de economia. Eu me expunha para fazer economia. É bom ter sempre mais do que duas pessoas a bordo para ter um pouco mais de segurança e de conhecimento. Nós, brancos, pensamos que entramos lá e conhecemos tudo. Na verdade, somos guiados pelos conhecimentos dos povos indígenas. Eu estaria em pelo menos quatro pessoas", disse.
Décadas atrás, foi iniciativa de Possuelo erguer uma base da Funai nas imediações dos rios Ituí e Itacoaí. A instalação constantemente é alvo de criminosos, que usam armas de fogo para intimidar líderes indígenas e servidores da Funai.
Pereira e Phillips desapareceram após partirem da Comunidade São Rafael em direção à cidade de Atalaia do Norte, onde teriam compromissos. A comunidade é conhecida por sofrer influência financeira de traficantes de drogas, garimpeiros e demais exploradores que invadem o território preservado.
Foi por coordenar um trabalho de formação de equipes de vigilância em terras indígenas, por meio da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que Pereira agendou reunião com um líder local. O homem, identificado como "Churrasco", não estava na área.
"Os caçadores entram por ali, por isso tem a base da Funai que coloquei lá. É a porta principal de invasão. Os rios Ituí e Itacoaí levam para o coração da terra indígena. É quase uma área internacional, perto da fronteira", disse Possuelo. "Tem narcotráfico, cocaína. Por lá mora um pessoal que tem interesse na terra indígena, principalmente madeireiros, pescadores e caçadores. São esses interesses que levantam aquela economia predatória. Todos que estão ali permanecem constantemente ameaçados há anos."
No retorno esperado a Atalaia do Norte, Pereira tinha um encontro com o também indigenista Orlando Possuelo, filho de Sydney. Foi ele quem primeiro estranhou a demora e se lançou à procura no caminho contrário.
"Eu estava no porto de Atalaia, às 8 horas, esperando. Esperei duas horas, ele não chegou e fomos atrás", disse. "Não tem como ele se perder no rio. Ele sabia dos perigos. Sendo sincero, infelizmente, não tenho mais esperança. Agora é esperar que a polícia pegue os caras certos."
Até outubro de 2019, Pereira atuava como coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Funai. Foi exonerado pelo atual presidente do órgão, delegado Marcelo Xavier. Agente licenciado, Pereira é um dos maiores especialistas da Funai, considerado uma espécie de sucessor de Possuelo. O extremo oeste do Amazonas tem a maior quantidade de povos isolados no mundo e é a parte mais intocada da floresta.
Comando Vermelho
A região do Vale do Javari, onde desapareceram o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista Dom Phillips, sofre reflexos de um misto de atividades clandestinas que vai além da extração de madeira e do garimpo. Desde os anos 2000, a região passou a ser alvo de disputa entre facções de narcotraficantes brasileiros, por ser estratégica para o escoamento de armas e drogas. As facções mais presentes são o Comando Vermelho (CV), originário do Rio, e a Família do Norte (FDN), criado na periferia e nas cadeias de Manaus.
A facção local ficou conhecida em 2017, quando comandou execuções no sistema prisional do Amazonas, num sinal do que seria o rompimento do acordo nacional entre as duas maiores organizações criminosas do País, o Primeiro Comando da Capital (PCC), de origem paulista, e o CV.
À época, a FDN era parceira do CV e executou integrantes do PCC. Hoje, FDN e CV disputam territórios. Segundo o Ministério Público, integrantes da FDN têm conexões com guerrilheiros colombianos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Além dessas três facções, também surgiu em Tabatinga (AM) o bando local "Os Crias", formado em 2019, por criminosos que eram das maiores facções. A presença de "Os Crias" na tríplice fronteira foi catalogada pela publicação Cartografias das Violências na Região Amazônica, em fevereiro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O documento indica que, do lado colombiano, a organização de narcotraficantes Caqueteños tem o maior controle no Amazonas.
A área em que Pereira e Phillips sumiram fica próxima à tríplice fronteira, sendo as principais cidades Santa Rosa, no Peru; Letícia, na Colômbia; e Tabatinga, no Amazonas. Os mesmos rios e igarapés onde as buscas são feitas servem aos traficantes como forma de escape. Os rios Amazonas e Javari são parte da rota. Autoridades já colheram indícios de que as organizações trabalham no extrativismo, com madeira e garimpo.
Militares dizem que as comunidades ribeirinhas e povos indígenas sofrem com a ausência do Estado e de oportunidades de renda, o que facilitou com que se alastrasse uma mistura de atividades ilegais a girar a economia local.