Nordeste

Peixe que só é encontrado no Ceará está em grave risco de extinção

Esse peixe levou milhões de anos para evoluir

Foto: Sanjay Veiga | Agência Eco Nordeste
O Peixe-das-Nuvens habita poças às margens do Rio Pacoti, em Aquiraz (CE)

No Ceará, o peixe-das-nuvens (hypsolebias longignatus), uma espécie rara de água doce que habita poças às margens do Rio Pacoti, em Aquiraz, sofre o sério risco de deixar de existir. Na última semana um movimento por parte de ambientalistas e coletivos denunciou um crime ambiental na área de habitat do peixe. O aterramento das poças onde ele vive, durante uma obra, seria mais que o suficiente para dizimar a espécie, caso não tivesse sido impedido pelas manifestações que ocorreram no local. 

Lá, havia uma caçamba e homens trabalhando rapidamente para o aterramento da área onde habita o peixe, sem levar em consideração a fauna existente na região. “Durante a manifestação, com a presença de equipe do Batalhão de Polícia do Meio Ambiente (BPMA) que solicitamos, a documentação da empresa foi exigida e constatou-se que encontra-se ilegal. As licenças apresentadas por eles eram válidas por apenas um ano e foram emitidas em 2020, antes de o peixe ser levantado como parte da fauna local”, destacou Sanjay Veiga, biólogo e ativista ambiental que esteve à frente das manifestações.

Na ocasião, estiveram presentes representantes da Secretaria de Agricultura, Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Pesca (Seamp) de Aquiraz que embargou a obra. “Após o embargo, eles saíram de lá muito rápido. Segundo o MPCE, todos que estavam trabalhando na obra deveriam ter sido conduzidos até a delegacia para prestar esclarecimentos, já que a intervenção resultou em diversos crimes ambientais”, frisou Veiga. 

Os ambientalistas agora lutam por medidas legais que forcem a empresa a retirar o barro depositado durante o aterramento da área nas poças onde vive o peixe. De acordo com Gabriel Aguiar, biólogo e vereador de Fortaleza engajado em causas ambientais, há pelo menos três processos de licenciamento para obras e empreendimentos que ameaçam a existência da espécie e de seu habitat: a duplicação da Rodovia CE-527 e mais duas obras particulares, sendo uma delas a construção de um shopping. 

A obra de duplicação da rodovia CE-527 havia inicialmente sido embargada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), contudo o órgão compreendeu, por meio de estudos, a possibilidade da realização sem causar danos à existência da espécie e suspendeu o embargo. Uma outra obra particular na região também teve o embargo suspenso sob o mesmo argumento da obra estatal, contudo, o estudo realizado para embasar essa liberação só levou em consideração a área da duplicação da estrada, não abrangendo os impactos causados por outras intervenções. 

“Desde quando as obras começaram, no início do ano passado, fomos alertados pelo pesquisador Telton Ramos sobre a iminência do desaparecimento da espécie. O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) instaurou Inquérito Civil que está em andamento. Paralelo a isso, o Ibama embargou as três obras que estavam sendo realizadas. Infelizmente, o Ibama desembargou as obras, depois de um estudo que dizia ser compatível continuar as obras com a existência da espécie. No entanto, o estudo não considerou os impactos cumulativos e sinérgicos das outras obras em andamento e a ausência total de áreas de proteção integral no entorno, que pudessem proteger a espécie. Além disso, não foi solicitado resgate dos animais, medidas mitigadoras e compensatórias eficazes”, explicou Gabriel Aguiar.

A proteção do peixe-das-nuvens contra os crimes ambientais cometidos contra ele nos últimos dias contou com o apoio do Instituto Pró-Silvestre e da Comissão de Defesa dos Animais (CDDA) da Ordem dos Advogados do Brasil do Ceará (OAB-CE).

De acordo com Karine Montenegro, advogada integrante da CDDA/OAB-CE, o MPF, em resposta, declarou que está avaliando a possibilidade de elaborar uma Ação Civil Pública devido à agressão ambiental ter sido gravemente crítica, uma vez que envolve a extinção definitiva de uma espécie de peixe que só existe naquela localidade. A Seamp decidiu embargar a obra no último dia 25. 

“Para ser permitida uma invasão dessa, precisaria de um rigoroso Estudo de Impacto Ambiental / Relatório de Impacto Ambiental (Eia/Rima), além de que não poderia nem se cogitar a possibilidade de ali existir uma espécie da fauna que só ocorre ali, configurando-se crime ambiental sério segundo a Lei de Crimes Ambientais (art. 29 e art. 33, da Lei 9605/98)”, destaca Karine. Montenegro 

Segundo Carlos Magno, biólogo e ativista do Instituto Profauna, é unanimidade por parte de todos os ambientalistas envolvidos no caso de que a solução mais responsável a se fazer nessa localidade é reconhecê-la como Unidade de Conservação, na intenção de tornar permanentemente proibida qualquer construção naquele ecossistema que abriga uma espécie única da fauna silvestre que, em todo o Planeta, só ali foi encontrada, além de todas as demais formas de biodiversidade existente no local. 

O peixe-das-nuvens é uma espécie com ciclo de vida peculiar. Ele nasce, se reproduz e morre durante as chuvas, colocando seus ovos no solo, até que possam eclodir no ano seguinte, com a chegada da nova quadra chuvosa. Daí o nome “peixe-das-nuvens”, porque seu raro modo de vida faz parecer que ele cai do céu junto com as chuvas. 

Por causa desse ciclo de vida anual, os peixes-das-nuvens costumam ter uma ocorrência muito restrita, muitas vezes limitados a pequenas poças. Isso faz com que as espécies de peixes desse grupo também estejam quase sempre ameaçadas de extinção. É o caso dessa espécie cearense, que ocorre só em Aquiraz. Ele foi encontrado apenas em pequenas lagoas temporárias às margens do Rio Pacoti.

Quanto à raridade e vulnerabilidade da espécie à extinção, Gabriel Aguiar destaca: “A extinção de uma espécie é algo dramático, que não deveria acontecer por causas não-naturais. É um atestado de falha nossa enquanto sociedade de coexistir com outras espécies. Falando em termos ecológicos, quando uma espécie é retirada de uma área, fica uma lacuna ecológica que vai gerar uma série de desequilíbrios ecológicos. O peixe-das-nuvens cumpre uma função ecológica de se alimentar e de ser alimento para outros animais, dentre outras funções que poderemos ainda descobrir, se a gente conseguir proteger a espécie”.

O biólogo e ativista Sanjay Veiga atenta para a reflexão de que a maioria da sociedade esqueceu do verdadeiro significado da palavra extinção. “Esse peixe levou milhões de anos para evoluir. Sua existência tem total relação com outras espécies de seu habitat, plantas, micro-organismos, clima e outros aspectos daquela área. É como um castelo de cartas onde cada carta representa uma espécie. Se retirarmos uma espécie, a possibilidade de esse castelo desmoronar é muito grande. Em algum momento, a falta desses animais vai afetar diretamente a existência do próprio ser humano”.