Gina Marocci

As Senhoras do Verão da Bahia


Nossa Senhora da Conceiçao da Praia - Foto: LEIAMAISba

Que me perdoem os Senhores Gonçalo, Lázaro e outros (claro que o Senhor do Bonfim é outra história!), mas quando o calor invade Salvador em dezembro, as Senhoras tomam conta do coração do povo e comandam uma longa temporada de festejos, as famosas festas de largo.

Apesar das festas terem perdido muitas características originais, elas ainda nos dão aquele gostinho de festa do interior, com as gambiarras de energia iluminando as ruas da pequena cidade efêmera, que se monta e desmonta nos três meses do verão, constituída de barracas com bancos e mesas, verdadeiros restaurantes populares, barraquinhas de tiro ao alvo e outros jogos e brinquedos de parques de diversão.

A primeira Senhora é Bárbara, santa mártir do início do Cristianismo, que se tornou a rainha dos raios, a orixá Iansã, no rico sincretismo da nossa cultura. A Senhora é cultuada em Salvador desde o século XVII, quando foi instituído o Morgado de Santa Bárbara, na Cidade Baixa, que era composto por quatro quarteirões de casas com função comercial e a igreja, demolida no início do século XX após o incêndio de 1898 que destruiu, também, o Hotel das Nações.

A imagem da Senhora foi transferida para a igreja do Corpo Santo e hoje está na igreja de N. Sra. do Rosário dos Pretos de onde sai a procissão no dia 4 de dezembro, com os devotos vestidos de vermelho, cor de Iansã, em direção ao Quartel do Corpo de Bombeiros, na Barroquinha, pois ela é a padroeira deles.

Depois do “banho” de mangueira, os fiéis se reúnem no Mercado de Santa Bárbara, onde há uma pequena capela em honra dela, para comer o famoso caruru. Esta festa é registrada no Livro Especial de Eventos e Celebrações como Patrimônio Imaterial da Bahia.

No dia 8 de dezembro, Maria, mãe de Jesus, é festejada como a Senhora da Conceição da Praia, padroeira do estado da Bahia, com missa solene, procissão pelas ruas do bairro do Comércio e com as manifestações mais populares nas poucas barracas que ainda teimam em se instalar defronte à imponente igreja do século XVIII.

A Senhora da Conceição também é festejada no bairro de Itapuã desde o século XIX, por iniciativa dos pescadores. Comemorada na quinta-feira antes do início do Carnaval de Salvador, a lavagem é feita por baianas vestidas a caráter que levam potes de cerâmica com flores e água de cheiro e lavam a escadaria da igreja de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã. Pela tarde a festa corre solta, com direito a samba de roda e batucadas, tudo ali, pertinho do mar.

No dia 13 de dezembro, Luzia, outra mártir do Cristianismo, é venerada como protetora dos olhos, e muitos fiéis acorrem à igreja de Nossa Senhora do Pilar e Santa Luzia, também na Cidade Baixa, onde, após a missa das 10 horas, eles saem em procissão, com andor enfeitado de flores brancas, amarela e vermelhas, pelas ruas do bairro do Comércio (ô bairro cheio de histórias!) até a igreja da Conceição da Praia e retornam à matriz.

A devoção a Nossa Senhora do Pilar vem desde o século XVII, e foi trazida pelos espanhóis, quando houve a unificação das coroas portuguesa e espanhola, pois ela é a padroeira da Espanha. Ao lado da igreja, os fiéis fazem fila para banhar os olhos e recolher em garrafinhas plásticas a água da fonte de Santa Luzia.

No dia 1 de janeiro, o Senhor Bom Jesus dos Navegantes se une à sua mãe, a Senhora da Boa Viagem (opa, olha a Cidade Baixa de novo!) na festa que abre os pedidos para um bom novo ano. Esta devoção nasce da a gratidão dos homens do mar, os pescadores e navegantes, por uma viagem bem-sucedida.

A galeota Gratidão do Povo, construída no final do século XIX retrata essa relação tão bela. Mas, quem toma conta do mês de janeiro são as festividades da Colina Sagrada comandadas pelo Senhor Bom Jesus do Bonfim, Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo do Amarante.

O tempo esquenta em fevereiro e a vontade que dá é virar peixe-boi, pititinga ou outro bicho d’água! E no dia 2, a Rainha das Águas toma conta da cidade. A festa de largo, única em louvor a um orixá, se consolidou no bairro do Rio Vermelho a partir da década de 1940, mas o culto à Senhora era comum em toda a Cidade Baixa no final do século XIX.

As oferendas eram depositadas no Porto, no Pilar, em Água de Meninos, na Ponta de Humaitá, no Bonfim, na Penha e na Ribeira. Já para o início do século XX, as homenagens a Iemanjá são encontradas na Gamboa, na Barra, em Ondina e no Morro da Sereia, no Rio Vermelho e Amaralina, Pituba, Armação, Piatã e Itapuã, enfim, na orla marítima da cidade.

Oxum, a mãe das fontes e rios, também era venerada em algumas fontes, como a Fonte da Vovó, na antiga Rua da Valla, em cachoeiras e rios, como ainda temos no Parque de São Bartolomeu. A cidade, com charcos e lagoas, também abrigava o culto a Nanã Buruku, venerada no Dique do Tororó, na Lagoa do Abaeté, e na Lagoa da Vovó na Fazenda Grande do Retiro.

No dia 2 de fevereiro também ocorre a festa em louvor a Nossa Senhora das Candeias, em alguns lugares chamada de Nossa Senhora da Luz. No sincretismo religioso, as Senhoras Mães das Águas são associadas a Maria e à sua mãe, Senhora Sant’Ana, assim: Nanã com Sant’Ana; Oxum com Nossa Senhora das Candeias; e Iemanjá com Nossa Senhora da Conceição.

Em todas essas festas de largo há a presença de corpos d’água, como o mar, a lagoa, o rio, uma fonte ou uma cachoeira, elementos fundamentais para os desbravadores, para a busca de alimentos, para a manutenção dos grupos humanos em qualquer lugar do planeta.

A busca pela proteção dessas Senhoras é muito forte na religiosidade do povo baiano. Europeus e africanos nos emprestaram o amor dessas mães, eles, que deixaram o mundo em que viviam, atravessaram o Mar das Tormentas, e aqui chegaram para o desconhecido.

A bênção, mães amadas, que suas águas que nos banham, nos purifiquem, nos curem e nos tornem mais fortes. Amém!

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Para saber mais

TAVARES, F.; CAROSO, C.; BASSI, F.; RAMOS, C. Inventário das festas e eventos na Baía de Todos os Santos. Salvador: EDUFBA, 2019.

PAZ, D. J. M. Dia de Festa no Mar: Maritimidade, hierofanias, heortologia urbana na Salvador oitocentista. Thésis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 13-74, nov. 2020.