Gina Marocci

O Natal na Salvador antiga

Então, chegamos ao fim do ano! Natal, Reveillon e pandemia, mais uma vez, mas, agora, com vacina, graças a Deus! Apesar dos preços extorsivos, ainda poderemos ter uma ceia em família, pois quem não tiver peru, irá de frango assado, quem não comprar bacalhau, poderá fazer um delicioso patê de atum para passar no pão delícia, o importante é estar com quem se ama, e vencer os obstáculos que a vida colocou nos nossos caminhos. Criatividade é o que não nos falta!

Para os cristãos católicos, o Natal e a Semana Santa, são sinônimos de festa, de alegria e de encontro familiar. E sempre foi assim. No período colonial, cidades como Salvador e Recife recebiam a população oriunda das fazendas e sítios, e os belos solares, que viviam fechados uma boa parte do ano, se abriam para receber amigos, parentes e aderentes. Acontecia, também, o trajeto inverso, da cidade para o campo, como registrou Debret em uma aquarela.


A senhora e suas mucamas indo passar as festas de Natal no campo (Debret).

Bailes e reuniões eram regados à ingestão de alimentos típicos e frutas da época, num ciclo de festas que começava em dezembro e só terminava em 6 de janeiro, por ocasião do dia de Reis. Nada de árvore de Natal, mas os presentes eram ofertados.

Na Salvador antiga, assim como em outras cidades, eram vistos escravos apressados que levavam nas cabeças grandes cestas com perus vivos e outras aves, leitões, licores, vinhos, bolos e doces feitos em casa embrulhados em folhas rendilhadas. No interior das cestas, ricos bilhetes escritos em papeis recortados. Ao bater nas aldrabas presas às portas e portões, os enviados diziam “Siô branco manda uns presente…”.


Escravos com presentes (Debret)

Os mais abastados ofertavam os presentes em bandejas de prata “com toalhas de musselina muito fina, pregueadas com arte e presas com laços de fita cuja cor é sempre interpretativa, linguagem erótica complicada pela adição engenhosamente combinada de algumas flores inocentes”, diz Debret em sua Viagem pitoresca ao Brasil, de 1834.

Nas ruas das cidades brasileiras, grupos de bumba meu boi, marujadas, congadas, reisados e pastoris com suas lapinhas se apresentavam para alegrar os moradores antes da chegada da Missa do Galo. Em pequenos grupos, cantando músicas de louvor, os participantes pediam licença para entrar nas casas, onde eram recebidos com comidas e bebidas.

As Pastorinhas, ou bailes pastoris, eram grupos formados por crianças e jovens que representavam o anjo, a estrela, pastoras e pastores, floristas, ciganas, José e Maria, e visitavam as casas onde havia presépios montados para cantar louvores ao Menino Jesus, dançar e recolher esmolas. Ao chegar cantavam: “Dona desta casa, venha nos abrir a porta, venha nos abrir a porta […] Entrai, entrai, pastorinhos, por este portal sagrado; vinde ver o Deus Menino; n'umas palhinhas deitado.” Ao final, se despediam: "As barras do dia Já vêm clareando; que belo menino na Lapa chorando."

Presépios vivos eram montados, com membros da comunidade no papel da Sagrada Família, dos Pastores e dos Reis Magos. Ao som de instrumentos eram encenados trechos da Anunciação ao nascimento de Jesus. O Terreiro de Jesus se prestava a essas manifestações cheias de alegria, que antecediam as Missas e novenas. Homens e mulheres vestiam-se com suas melhores roupas, mostravam suas joias de maior valor e os escravos, por “pura bondade dos seus patrões”, recebiam roupas novas.

Em cada igreja, ricos presépios eram montados, conforme o costume medieval trazido para o Brasil pelos religiosos portugueses. Na Bahia, artistas faziam esculturas para os presépios em barro, madeira, e até cascas de cajazeira. Esse costume veio de Portugal, onde as famílias mais abastadas e as igrejas mais ricas encomendavam a artistas renomados presépios especiais, que se dividiam em vários cenários, não apenas da natividade, mas do cotidiano das vilas e cidades. Além do barro e da madeira, encomendavam-se peças em prata e marfim. O presépio setecentista da Basílica da Estrela, em Lisboa, é um dos mais belos de Portugal e tem mais de 500 figuras.

As casas e as igrejas eram enfeitadas com flores e galhos de algumas árvores, principalmente da pitangueira, tão perfumada. Não apenas no Natal, mas nas procissões religiosas, missas, velórios e enterros, inauguração de uma venda nova, ou seja, em todas as festividades havia a presença dos ramos de pitangueiras e de flores, estas colhidas dos generosos quintais, tão comuns na cidade.

Não demorou muito para a liturgia do jejum na véspera de Natal ser esquecida, pois apesar da ceia ser servida à meia noite, após a Missa do Galo, petiscos e bebidas eram servidos antes. Na véspera de Natal, os mais ricos organizavam bailes e reuniões em suas propriedades, grandes banquetes de confraternização entre famílias amigas. Segundo alguns autores, ninguém ficava de fora da comemoração, pois trabalhadores urbanos e administradores públicos, todos eram convidados a confraternizar. Os escravos também eram liberados para seus festejos, as chamadas “danças africanas”, que atraíam a curiosidade dos brancos.

Nas mesas os mais diversos doces de frutas sazonais: abacaxi, manga, caju, goiaba, laranja, limão, marmelo e umbu. O coco era figura presente em bolos e cocadas, assim como o polvilho azedo e a tapioca. Alfenim, doce de origem árabe, pão de ló, conservas, bolos de aipim, milho verde, carimã, bolachinhas de goma, beijus, sequilhos e bolinhos de estudante, adaptações de bolos e pudins e geleias, água de flor de laranjeira e flores maceradas serviam para aromatizar bolos doces e caldas. Era assim o Natal na Bahia antiga. Então, um feliz Natal para todos nós!