Curso d'água em Rio de Contas, Bahia - Foto: Fronteira/Wikimedia
O espetáculo de uma enchente no Rio de Contas em Ipiaú, na Bahia. O povo ia para a beira do rio pra ver. Descia de tudo com as águas da enchente: bois, porcos, melancias, abóboras, árvores inteiras arrancadas com raiz e tudo. Cá de cima a gente via os pedaços de barrancos dissolvendo-se como sorvete e tornando a água ainda mais barrenta.
A operação para salvar um boi que descia na enchente era uma luta que envolvia uns cinco a seis homens. Dois tinham que descer a correnteza, acompanhando o boi se afogando, até conseguir laçá-lo e o animal ser puxado pelos outros para a margem. Depois, o dono do boi tinha que pagar para tê-lo de volta. “Se não é a gente, o boi do senhor ia morrer”.
O fundo da casa dava para o Rio de Contas. Eu e meus três irmãos éramos proibidos de entrar no rio, mesmo fora do tempo das enchentes. Nossa tática era pegar a bola no quintal e chutar por cima do muro, ela batia no barranco e ia parar dentro do rio. “Mamãe, a bola caiu no rio”. “Vão lá pegar, mas não demorem”. E a gente ficava quase uma hora. Lembro ainda da prosa e das canções das lavadeiras na beira do rio batendo o lençol nas pedras pra ficar mais alvo. Muitas fumavam cachimbo.
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Em Algodão, distrito de Ipiaú, o pessoal quando estava pilando o café cantava muito assim: “Mandei fazer um relógio/ Da casca do caranguejo/ Pra poder marcar os minuto/ Das hora que não te vejo”.
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Ah, as bacias de alumínio, que barulho elas faziam! Ficavam cheias de roupa quarando no quintal. Minha tia Nina plantou uns pés de amendoim no quintal. Um dia, meu irmão Cleomar puxou a ramagem, comeu os amendoins, fechou as cascas e plantou de novo. No outro dia, tia Nina se queixava: “Não sei o que acontece com esses amendoins. Nasce a casca, mas não tem o caroço. Deve ser alguma doença”.
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Ouço o barulho do fole batendo para acender o ferro de passar a carvão.
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Os sons do navio da Companhia de Navegação Bahiana (CNB) e do trem. Naquele tempo, fim da década de 50 e início da de 60, a gente já utilizava o chamado “transporte intermodal”. Para ir de Salvador a Ipiaú a gente pegava um navio da Bahiana até São Roque do Paraguaçu, onde pegava um trem até Santo Antônio de Jesus e depois um ônibus até Ipiaú. Em São Roque, as mulheres vendiam pela janela do trem um prato feito de arroz com camarão, muito camarão mesmo, e tinha que comer ligeiro, antes do trem sair, para devolver o prato e o garfo.
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Em Ipiaú, o barulho do aguadeiro entrando e saindo da casa com os carotes de água trazidos no burro, deixando o corredor todo molhado. A água para lavar pratos, banheiro, etc, a chamada água de gasto, era retirada do Rio de Contas. A água de beber você pagava a um aguadeiro que vinha, em média, uma vez por semana e enchia todos os potes de barro, filtros e vasilhas. Dizem que o aguadeiro sabia da vida de muita gente, pois era a única pessoa da cidade que entrava em praticamente todas as casas. Meu avô Chico Ribeiro fez na casa dele um grande tanque de cimento para aparar água de chuva, também usada para o gasto.
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Em Salvador, morando na Avenida Sete de Setembro, 239, ainda peguei o bonde, cujo forte barulho parecia fazer tremer o chão. Eu gostava de ver as fagulhas que saíam dos cabos elétricos que alimentavam os bondes. Tinha o bonde aberto e o fechado. Os sons do recreio no Ginásio de São Bento e da maldita campainha fazendo-nos retornar à sala. No recreio, a disputa no ping-pong. Só tinha uma mesa, filas enormes dos dois lados, e você saía por um ponto.
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Ouço os primeiros acordes da orquestra no baile infantil do Clube Carnavalesco Fantoches da Euterpe. E a tristeza quando eles começavam a tocar “Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai/ Está chegando a hora...”, sinal de que o baile ia acabar.
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Ah, e a Primeira Comunhão? A minha foi na Igreja dos Mares, em Salvador, com uns 11 ou 12 anos. Tinha de me confessar num dia pra comungar no outro e nesse período não podia pecar por pensamentos, palavras e obras. Fiquei muito preocupado: “Ficar um dia sem pecar por palavras e obras até que vai, mas não pecar por pensamento tá difícil”. De noite, aflito, confessei a dona Cleonice: “Mamãe, o padre falou que não pode pecar até amanhã na hora da comunhão, senão a comunhão não vale. O problema é que é só fechar o olho que vejo um muro branco escrito PORRA com letras enormes. O que faço?” “Calma, Chico, é só um pecado do pensamento, reze um pouco; vai dar pra comungar, sim”.