As manifestações culturais inscritas nos Livros de Registro, sejam do IPHAN ou do IPAC, são reconhecidas como patrimônio imaterial, portanto, instrumentos de referência à identidade e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Como já falamos sobre dois livros sob a guarda do IPHAN, o de Registro dos Saberes e o das Celebrações, vamos tratar neste texto sobre o Livro de Registro das Formas de Expressão, no qual são inscritas as manifestações artísticas, e o dos Lugares, em que são registrados os mercados, as feiras, santuários e praças onde se concentram ou se reproduzem práticas culturais coletivas. Para seguir a mesma lógica de classificação, o IPAC tem sob sua guarda o Livro de Registro das Expressões Lúdicas e Artísticas e o dos Espaços Destinados a Práticas Culturais Coletivas.
No Livro de Registro das Formas de Expressão (IPHAN) há 18 manifestações culturais reconhecidas como patrimônio imaterial, uma seleção em que estão representadas as regiões Nordeste, Norte, Sudeste e Sul. Os povos indígenas Wajãpi, do Amapá, estão representados pela Arte Kusiwa-Pintura Corporal e Arte Gráfica, que está inscrita desde 2002 como patrimônio imaterial brasileiro.
Em 2003, a Unesco concedeu-lhe o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Da Região Sudeste trazemos o Jongo, forma de expressão que reúne música com percussão de tambores, dança coletiva e religiosidade, que mesclam as festas de santos católicos com as raízes afro-brasileiras, principalmente dos povos bantu.
Ele é praticado nas periferias urbanas e em comunidades rurais dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. É também conhecido pelos nomes de tambu, batuque, tambor e caxambu, a depender da comunidade que o pratica.
Jongo na gravura de Augustus Earle de 1822
O Fandango Caiçara é uma tradição natural do litoral sul de São Paulo e do norte do Paraná e, apesar de ser original da Espanha, chegou aqui com os colonos portugueses. É um festejo que envolve religiosidade, dança, música e poesia e foi registrado pelo IPHAN em 2012. O Fandango Caiçara se classifica em batido e bailado ou valsado.
Os homens participantes usam tamancos de madeira para marcar as batidas do ritmo. Os instrumentos utilizados são a viola, a rabeca e o adufo, mas, atualmente, o violão e o cavaquinho, além de pandeiros, surdos e tantãs também são utilizados pelos músicos.
O Livro de Registro dos Lugares possui quatro inscrições: a Cachoeira de Iauaretê, Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuris (AM); a Feira de Caruaru (PE); a Tava, Lugar de Referência para o Povo Guarani (RS); e a Feira de Campina Grande (PB).
Esses lugares são espaços de representação da vida social de uma comunidade, que dão sentido de pertencimento aos grupos sociais que os constroem. Então, o dizer das nossas feiras? Elas são uma profusão de cores, cheiros e sons, pura alegria! A Feira de Caruaru, inscrita no Livro dos Lugares em 2006, e localizada na cidade de mesmo nome, é uma feira livre que tem sua origem no comércio de gado. Vaqueiros, tropeiros e mascates pousavam numa fazenda que ficava em um dos caminhos do gado, entre o sertão e a região produtora de cana-de-açúcar.
Frequentada por milhares de pessoas, ela é, na verdade, várias feiras onde as pessoas compram carne, frutas, verduras, cereais, flores, raízes e ervas, panelas e outros utensílios de barro, calçados, vestuário, ferramentas, móveis e eletrodomésticos usados, e ferro velho. Ainda tem um espaço do artesanato, também chamado de Feira dos Artistas, onde são vendidas peças de barro, madeira, pedra, metal, palha, coco, cordas, couro, tecidos e bordados.
Dez terreiros de candomblé estão inscritos no Livro de Registro dos Espaços Destinados a Práticas Culturais Coletivas (IPAC, 2014), todos eles localizados no Recôncavo Baiano: oito, no Munícipio de Cachoeira e dois, em São Félix. Eles são os primeiros a receber o registro como bens imateriais que, segundo o IPAC, é mais adequado aos terreiros, pois, além de proteger a estrutura física, possibilita a salvaguarda dos rituais, da culinária, enfim, de todos os elementos que caracterizam a religiosidade afro-brasileira, mas, também, aqueles que são singulares a cada uma dessas comunidades.
O Terreiro Ilê Axé Icimimó Aganjú Didê tem mais de 200 anos de história na cidade de Cachoeira e pertence à nação Nagô Tedô. Em 1913, Mãe Judith comprou um terreno que pertencia à Companhia União Fabril da Bahia, num período de forte perseguição ao Candomblé. Apesar de ter a escritura do terreno há mais de 100 anos, infelizmente, em 2019, o conflito existente entre a comunidade de candomblé e a Empresa Penha Papel e Celulose, a qual reclama as terras do terreiro, tomou um vulto maior por conta da invasão de funcionários armados da companhia, que iniciaram a demarcação de parte do terreno do terreiro, alegando que o mesmo se trata de propriedade da empresa, fato que se tornou notícia nos jornais e canais de televisão.
A questão fundiária é um problema nacional, pois milhões de pessoas que vivem em cidades e em zonas rurais não possuem documentos que comprovem a posse dos terrenos em que habitam, muitas vezes ocupados por várias gerações da mesma família. Nesse contexto podem estar muitas comunidades quilombolas e terreiros de candomblé, bem como nossos povos indígenas. Este é, sem dúvida, um grave problema social que precisa de soluções em nível municipal, estadual e federal. E mais ainda, do reconhecimento dos direitos dessas comunidades pela sociedade brasileira.
Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema chamado Canção Amiga que fala de gente, que se vê e se reconhece. Assim deve ser o patrimônio cultural brasileiro, pois todos devemos nos reconhecer nele. Tem de ser plural, destituído de preconceitos e elitismo! Deixamos esse belo recado do nosso poeta.
“Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça. Todas as mães se reconheçam. E que fale como dois olhos. [...] Minha vida, nossas vidas, formam um só diamante. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças.”
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Para saber mais
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro de Registro das Formas de Expressão - Bens Culturais Imateriais.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro de Registro das Celebrações - Bens Culturais Imateriais.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA. Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações.