Gina Marocci

Como o patrimônio cultural protege a memória do povo


Palacete em Salvador - Foto: LEIAMAISba

Apesar de a discussão sobre preservação de patrimônio histórico ter iniciado em alguns países no século XVIII, no Brasil ela vai tomar força no século XX. Durante as primeiras décadas deste mesmo século, países europeus se reuniram na Grécia para discutir a questão da preservação, Le Corbusier escreveu a Carta de Atenas que se tornou um importante marco na defesa de uma política de preservação e tombamento de bens isolados.

Em 1924, os modernistas Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Olívia Penteado e Godofredo Teles, encabeçados por Mário de Andrade, vão ao Rio de Janeiro e às cidades históricas mineiras para mostrar a arte e a cultura brasileiras ao poeta franco-suiço Blaise Cendrars, o que foi chamado de caravana modernista de São Paulo.

Nessas visitas, os modernistas buscaram entender e identificar aquilo que definiria a singularidade nacional, ou seja, o que seria considerado o nosso patrimônio cultural a ser protegido por uma legislação específica a partir da década de 1930. Havia uma preocupação verdadeira entre os intelectuais, artistas e políticos devido aos roubos e ao contrabando de nossas obras de arte sacra para o exterior, ao abandono e à demolição sistemática das edificações históricas.

Outra questão que fomentou a discussão sobre o patrimônio a ser protegido foram as reformas urbanas ocorridas nas duas primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Recife e em Salvador com o intuito de apagar as marcas do que se referia ao período colonial.

A Constituição Federal de 1934 já havia determinado que caberia aos entes federados a responsabilidade de fomentar a proteção às belezas naturais e aos monumentos de valor histórico ou artístico, combater a evasão de obras de arte e estimular o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.

Em janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), com o objetivo de promover o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e Artístico nacional, compreendido como o “[...] conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico [...], monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana.”

Mas, o que é histórico? E o que é arte? Quais paisagens e locais mereceriam o tombamento? Afinal, o que é notável? A pedido do presidente Getúlio Vargas, Mário de Andrade havia elaborado em 1934 uma proposta de vanguarda para nortear os tombamentos e nela estavam elencadas não apenas as edificações históricas e as obras de arte, mas, também, os cantos e danças populares, as lendas, alimentos e remédios tradicionais, as tradições indígenas, ou seja, o modo de ser dos povos que compõem a identidade brasileira. No entanto, a burocracia governamental não entendia a cultura popular como patrimônio, então, optou por elaborar uma seleção de monumentos históricos e artísticos que representassem um passado heroico e glorioso e que representassem a identidade nacional.

Em consonância com esse pensamento, em novembro de 1937 foi promulgada a nova Constituição Federal (Estado Novo), e nela mereceriam proteção e cuidados especiais os monumento históricos, artísticos e naturais, bem como paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza.

O Decreto-Lei nº 25, que regulamenta a Lei nº 378, dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Nele estão definidos quatro Livros do Tombo: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular; Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica; Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

Os modernistas haviam colocado em destaque o barroco como genuíno estilo de arte nacional, então, nesse momento, bens isolados e conjuntos urbanos foram tombados numa primeira lista, de 1938, pelo SPHAN, e passaram a ser registrados nos Livros de Tombo. Em 1938, o SPHAN tombou mais de 250 monumentos, distribuídos em 11 categorias: edifício e acervo; conjunto arquitetônico; coleção ou acervo; edificação; ruína; conjunto rural; conjunto urbano; bem móvel ou integrado; infraestrutura ou equipamento; patrimônio natural e jardim histórico. Para facilitar nossa análise vamos considerar a divisão regional atual do Brasil. Então, as regiões Sudeste, com 136 tombamentos, e a Nordeste, com 103 tombamentos, concentraram mais de 70% dos tombamentos, com uma concentração em edificações isoladas e edificações com acervo.

Procurou-se salvaguardar as edificações barrocas, representadas pelas igrejas, com o acervo, e conventos católicos. As cidades históricas de Minas Gerais, joias do barroco, também se tornaram patrimônio arquitetônico, histórico e artístico nacional. Na próxima semana veremos os monumentos tombados em 1938, por categoria e mais um pouco da evolução do conceito de patrimônio cultural.

Para saber mais

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Processos de tombamento e bens tombados. Atualizado em: 13 mai. 2021.

MARTINS, S. A experiência da modernidade e o patrimônio cultural. REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 1, volume 1(1):2014.

WESTIN, R. Modernistas, reformas urbanas e contrabando de arte fizeram Brasil acordar para proteção da cultura. Brasília: Agência Senado, 3 out. 2020.