Foto: Nguyen Linh/Unsplash/Creative Commons
E eu tinha acabado de sair da peça "Homens, Santos e Desertores", do meu amigo/irmão Mário Bortolotto. Estava mexido. Eu era aquele desertor. Eu buscava a santidade. Eu quis encontrar Deus em igrejas, bares sujos, picos de cocaína. Votos secretos de pobreza.
Quem quer encontrar Deus pode enlouquecer. Comprei vários livros com o amigo Anselmo Luis, que tinha um Sebo em frente ao Teatro Satyros.
Dentre tais livros, comprei "Meninos de Kichute" (que virou o premiado filme), do autor Marcio Americo. Passei a noite lendo. Uma frase emendava na outra, como energia, como a vida no papel, como algo que eu nunca tinha visto antes. Sem enrolação. Sem querer parecer inteligente, sem cabotismo.
E eu ia abrindo a geladeira, tomando guaraná, mijando na madrugada, sem largar o livro. Eu ainda não tinha lido Charles Bukowski e nem John Fante. Mas já tinha lido as novelas de Honoré de Balzac, tinha passado pelos filósofos alemães, tinha bebido dos chamados clássicos também!
Havia enfiado o dedo dentro da consciência e só sentia o fedor de nossa amargura. Eu não sabia que podia escrever daquele jeito. "Quem é que quer flores depois de morto? Ninguém."
Foi quando me lembrei quando aprendi a odiar. Essas coisas a gente aprende... É como fumar cigarros.
O cara era de uma espécie de turma (tribo) rival. Garotos gostam, precisam disso, desse tipo de coisa, de rivalidade, medir forças, marcar território. Deve ser atávico.
Como foi dificil pra mim, gostar de cigarro. Demorou. Sofri, quase vomitei, odiava o gosto, mas segurei a bronca de engolir toda aquela fumaça. Disfarçava, forçava, porque queria participar do grupo. Queria pertencer a algo. Queria ser casca-grossa. Mesmo me sentindo frágil. Mesmo sabendo que a humanidade inteira é casca-fina.
Somos todos finos como papel. Mas isso eu escondia. Até de mim. Aí me falaram que eu tinha odiar o tal garoto da escola da frente. Ele tinha arrumado encrenca com um dos nossos. E eu tinha que odiar. E eu tive que engolir o ódio, como a fumaça daqueles cigarros todos que eu já estava me acostumando e até gostando.
Tentei odiar o garoto. Eu disfarçava, mentia. Mas nunca consegui. Olhava pra ele e ele parecia portar um tipo muito particular de solidão e de fraqueza. De não se sentir em casa nesse mundo. Como eu. Não saberia explicar. Ele nunca fez mal pra mim. E pra ninguém, que eu saiba.
Esse garoto sumiu. Desapareceu. Um dia, ficamos sabendo que ele tinha morrido. Disseram que foi leucemia. Eu não sabia do que se tratava. Que doença era aquela? Mortal? Me lembro que meus olhos se encheram d'água. Sai dali, de fininho, com vergonha, com medo de ser descoberto. Sozinho, no banheiro da escola fiquei.
Fui na missa de sétimo dia dele, sem que meus amigos soubessem. Fiquei com tanta pena de sua mãe. Ela chorava e seu choro era de uma dor que não tinha fim ou fundo. Eu rezei naquele dia. Nunca consegui odiá-lo. Nunca.
Levei muitos anos para conseguir abandonar o cigarro. Foi muito dificil. Tinha aprendido, com muito esforço, a gostar daquilo que eu execrava, que me fazia querer vomitar.
E descobri livros que falavam disso. Dessa inadequação. E os autores, e até mesmo os vendedores de livros: se tornaram meus amigos. Meus irmãos. Quero que minhas filhas saibam disso: o ódio é um veneno terrível.