O roteiro básico é quase sempre o mesmo: um animal, como um macaco, cachorro ou galinha, serve de presa indefesa enquanto é atacado por um “terrível” predador, como uma cobra, uma águia ou um crocodilo. Suspense e trilha de tensão para indicar o ataque iminente, seguido do desfecho agressivo. Um “heroico” humano entra em cena e separa os animais. Tudo o que se vê é falso. À exceção do sofrimento injustificável causado aos animais filmados, além de outros diversos problemas relacionados.
Uma investigação recente de Proteção Animal Mundial, organização não-governamental que trabalha pelo bem-estar animal, encontrou exemplos de vídeos de resgates forjados envolvendo seis tipos de animais domésticos e 14 espécies silvestres (incluindo pássaros, mamíferos e répteis - muitos ameaçados de extinção) como presas ou predadores. Constatou, ainda, que eles têm se tornado mais presentes do que se imaginava nas redes sociais.
Ao todo, a partir de somente dois termos básicos de busca, e após uma verificação e limpeza dos resultados, foram encontrados no YouTube 181 vídeos de resgates forjados entre outubro de 2018 e maio de 2021.
A análise da Proteção Animal Mundial do grupo dos 50 vídeos mais vistos de resgates forjados permitiu também vislumbrar o tamanho do público potencialmente impactado. Essa meia centena de exemplos foi postada em 28 diferentes canais, que em conjunto contabilizavam 133,5 milhões de visualizações e 13 milhões de assinantes no YouTube.
Há meio milhão de “curtidas” nestes vídeos, mais que o triplo da quantidade de “não curtidas”, o que sugere que boa parte do público é incapaz de detectar a crueldade envolvida nas postagens.
O Brasil não aparece como tendo sido palco dos vídeos analisados na amostra. De forma semelhante, espécimes da fauna nativa nacional não foram identificados. O país, no entanto, é um dos maiores mercados mundiais quanto o assunto é consumo de informação digital: os brasileiros têm uma das maiores médias globais de tempo de permanência na internet e estão também entre os povos mais intensivos no uso de redes sociais em todo o planeta, especialmente para ver vídeos.
O País esteve entre os protagonistas de outro relatório recente da Proteção Animal Mundial – “Foco na Crueldade: o impacto negativo das selfies com a vida silvestre na Amazônia” – apontando os problemas das interações inadequadas com animais no contexto do turismo.
YouTube descumpre compromisso público
Foi verificada uma tendência de aumento das postagens desse tipo de conteúdo ao longo do período do levantamento, inclusive após a manifestação de um compromisso público do YouTube, em 25 de março, de que iria combater tal tipo de abuso, seguindo o que já está previsto em suas próprias políticas.
Desde essa promessa pública, vídeos forjados de resgates continuaram a ser enviados para a plataforma sem maiores dificuldades. Entre 26 de março de 2021 e 1º de junho de 2021, a Proteção Animal Mundial identificou 47 vídeos recém enviados em 15 canais diferentes, somando conjuntamente mais de 7 milhões de visualizações e 2,7 milhões de assinantes na plataforma.
No momento da publicação destes números, alguns dos vídeos forjados de resgates de animais foram retirados em resposta à atenção da mídia sobre o assunto. No entanto, a grande maioria do conteúdo descrito ainda estava disponível publicamente.
Onde está o problema
Os registros colocam animais e pessoas desnecessariamente em risco e causam estresse extremo aos animais.
Um vídeo perturbador mostra um gibão-de-mãos-brancas (Hylobates lar, espécie classificada como ameaçada de extinção na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais – IUCN, na sigla em Inglês) em pânico tentando desesperadamente escapar de uma píton-reticulada. Já outro mostra também uma gata tentando proteger seus filhotes de uma cobra constritora.
Durante as filmagens dos vídeos, animais “vilões” predadores são mostrados sendo mordidos, arranhados, bicados, repelidos e feridos pelas presas, bem como sendo cutucados com gravetos, manuseados bruscamente e feridos pelo humano – o herói de araque – durante o resgate.
Essas encenações provavelmente são repetidas várias vezes até que se consiga as melhores imagens, proporcionando uma edição final que alcance o máximo potencial de visualizações, cliques e compartilhamentos.
“Há muito para se criticar em toda essa situação. Para além do que identificamos de maus tratos e crueldades com os animais, há a exploração da boa vontade alheia. Não há nada que permita comparar o ato de presenciar, registrar ou estudar uma interação espontânea entre predador e presa na natureza com os vídeos cruéis que detectamos”, explica o gerente de Vida Silvestre da Proteção Animal Mundial, João Almeida.
“A única coisa em comum é a curiosidade das pessoas que porventura são expostas a esses registros e das que se interessam por documentários idôneos. E é isso justamente que gente mal intencionada está explorando nas redes sociais com o intuito gerar visualizações, compartilhamentos, curtidas e obter lucro.”
Espécies em risco
Do ponto de vista da conservação, a análise realizada confirma o uso de espécies consideradas ameaçadas de extinção. Entre elas, o crocodilo-siamês (Crocodylus siamensis) e a tartaruga alongada (Indotestudo elongata), espécies criticamente ameaçadas; o gibão-de-mãos-brancas, espécie ameaçada; a píton birmanesa (Python molurus bivittatus), espécie vulnerável.
Três espécies também estão listadas no Anexo I (mais alto grau de ameaça de extinção) da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES): o gibão-de-mãos-brancas, o crocodilo-siamês e o lagarto monitor de bengala (Varanus bengalensis). Outras cinco espécies estão listadas no Anexo II da Convenção: a tartaruga alongada, a píton-birmanesa, a águia-falcão-de-crista (Nisaetus cirrhatus), a águia-cobreira (Circaetus gallicus) e a píton-reticulada (Malayopython reticulatus). Dados os riscos de conservação destas espécies, o uso de indivíduos, mesmo em pequenos números, pode ter impacto decisivo para a na sobrevivência das populações selvagens remanescentes.
5 indícios para os quais o público deve ficar atento:
1. Sinais óbvios de lesão física ou dano, como cortes, feridas e asas cortadas, ou comportamentos que indicativos de que o animal está estressado ou com medo. Isso é algo que pode ser visto no predador ou na presa antes do suposto ataque. Pode ser a respiração ofegante ou uma postura encolhida;
2. Os locais em que os encontros acontecem não são aqueles em que normalmente se esperaria encontrar o predador ou presa retratados. Por exemplo, uma espécie de floresta em uma área aberta;
3. Os animais predadores ou presas demonstram comportamentos atípicos durante o suposto ataque, como cobras enroladas muito frouxamente em torno da presa, ou predadores respondendo de forma tímida, sem tentar escapar, quando o humano intervém;
4. Existência de vários vídeos semelhantes postados por um mesmo canal. Vale atentar se parece que os mesmos animais e/ou locais estão sendo usados ??repetidamente. Às vezes é possível notar as mesmas marcas ou padrões nos animais, ou ainda uma mesma toca ou buraco no chão;
5. O comportamento inadequado do "herói" humano depois que o predador e a presa foram separados. Frequentemente acontece destes indivíduos continuarem mantendo os animais a uma distância próxima como forma de manter a tensão e instigar novas reações;
Lançada em 2015, a campanha da Proteção Animal Mundial intitulada “Silvestres. Não entretenimento” está mobilizando a indústria do turismo de vida selvagem para longe de formas cruéis de entretenimento – como passeios de elefante e espetáculos – e na direção de experiências positivas com a vida selvagem, nas quais os turistas podem apreciá-la na natureza ou em verdadeiros santuários.