Gina Marocci

Por que as ruas de Salvador receberam os nomes que têm


Antiga Rua das Princesas, em Salvador (foto de 1910)

Os nomes dados às ruas nos contam histórias. Já falamos do costume português de denominar ruas que ligam marcos urbanos importantes de ruas direitas, e como o mantivemos ao verificar que novas ruas de Salvador são batizadas de direitas.

Temos, ainda, algumas ruas com seus nomes antigos, relacionados a uma atividade como a Baixa dos Sapateiros, as ruas do Açougue, das Hortas, da Forca (porque se via a forca montada na Praça da Piedade).

Algumas ruas são denominadas em homenagem a alguém, muito conhecido ou não, mas vamos falar de outra característica herdada dos portugueses que é o arruamento por atividades, ou por ofícios.

Esse costume de localizar os negociantes e artífices em ruas centrais, que data do século XIV, organizou, ainda no século XVIII, a localização do comércio e dos serviços, não apenas em Salvador, mas também em vilas e cidades mineiras e nas cidades maiores do Brasil.

Para entendermos melhor vamos falar um pouco sobre o terremoto de 1755 que destruiu grande parte de Lisboa, que possuía cerca de 250 mil habitantes e aproximadamente 20 mil residências, das quais, somente 3 mil ficaram em condições de habitabilidade.

O terremoto durou 7 minutos, e lhe seguiram um maremoto e um incêndio que levou 5 dias, deixou milhares de feridos e cerca de 10 mil mortos.


Pintura de João Glama sobre o terremoto de 1755

Era o reinado de D. José I, cujo Primeiro Ministro, o Marquês de Pombal, tomou as rédeas da reconstrução da cidade e as ações se concentraram na parte baixa de Lisboa, entre a ribeira, onde se localizava o Terreiro do Paço, e o Rossio.

A equipe da Casa do Risco, comandada pelo engenheiro militar Manuel da Maia, elaborou a proposta do que se conhece hoje como a Baixa Pombalina.

Na reestruturação da Baixa, Pombal determinou que os artífices continuassem a se organizar em arruamentos. As ruas novas receberam seus nomes em 15 de novembro de 1760. As principais, abrigaram atividades nobres; as secundárias, travessas, ocupações modestas e manuais.

A Rua Nova d’El-Rei, atual Rua do Comércio, foi reservada para os capitalistas e comerciantes de louças da China e chás. A Rua Áurea, depois Rua do Ouro, foi destinada aos ourives do ouro. A Rua Augusta, para os comerciantes de lãs e sedas. A Rua Bela da Rainha, hoje Rua da Prata, para os ourives da prata e livreiros. A Rua Nova da Princesa e a Rua dos Fanqueiros, para os comerciantes de quinquilharias e fancaria, o comércio das fazendas grosseiras de algodão.

Nas ruas secundárias, corporações de artífices, santos padroeiros de antigas igrejas e capelas. Quanto ao Terreiro do Paço, se tornou a Praça do Comércio, com a sua Bolsa.


Projeto da Baixa Pombalina (1758)

O projeto da Baixa influenciou decisões de ordenamento dos trabalhadores nas cidades brasileiras, cujas Câmaras já organizavam as atividades de alguma maneira sem, contudo, por determinações oficiais.

Em Salvador, no século XVIII, a vendagem dos alimentos era feita em vários pontos da cidade, pois não havia um mercado, apenas quitandas ou feiras livres, como se chamava em Angola.

Numa postura do início do século XVIII, determinava-se que as embarcações de peixe venderiam, com cabo em terra, desde as Pedreiras até a igreja do Pilar.

Em 1734, o rei determina o arruamento dos ourives, oficiais de fundição e mecânicos a pedido da Câmara, que reclamava não conseguir manter o controle e a fiscalização sobre a movimentação do ouro na cidade.

Em 1749, uma carta régia reforça a obrigatoriedade do arruamento dos ourives de ouro e prata, bem como o seu registro no Senado. A questão fundamental desses arruamentos, pelo menos na primeira metade do século XVIII, é tentar reduzir o contrabando de ouro.

Em 1773, a Câmara determinava os lugares dos diversos vendedores (lancheiros) no cais novo, chamado de cais dos Padres (da Companhia de Jesus).

Mais adiante, as atas falam de um novo cais, construído pelo Senado, com recursos dos foros pagos pelas ganhadeiras da praia, transferidas para o terreno do novo cais com o objetivo de concluir as obras.

Novamente, em 1795, fala-se da transferência de vendeiras e regateiras do cais de Santa Bárbara para a praça do cais novo onde se estabeleceria a “geral quitanda da Cidade Baixa, e não em diversas partes, como se via em prejuízo dos viandantes.”

Além da locação de vendedores e regateiras, orientava-se a localização dos ourives, oficiais de fundição e mecânicos, em arruamentos a fim de facilitar o controle sobre essas atividades, nos moldes do que ocorria em Portugal.

Em 1785, essa maneira de controlar as atividades dos prestadores de serviços, estendeu-se às atividades comerciais, como mostra a Postura 33: “[...] os ferreiros e caldeireiros terão daqui em diante as suas tendas desde o Trapiche do Azeite até o Hospício dos Padres de S. Felipe Neri. Os homens de negócios que vendem atacado e de retalho, terão suas casas e lojas[...] desde a Alfândega até a igreja do Pilar, isto é, na Cidade Baixa e na Cidade Alta, desde as Portas de S. Bento até as Portas do Carmo, para a rua Direita e do Taboão, até a rua Nova que se está fazendo. Os latoeiros, funileiros, douradores e pedreiros, terão as suas tendas do princípio da ladeira das Portas do Carmo até a Cruz do Pascoal. Os mestres das tendas de barbeiro que ensinam a tocar instrumentos, terão as suas tendas no princípio da ladeira do Álvaro e bairro da Saúde. Os tanoeiros, na rua dos Coqueiros, os tabaqueiros na rua do Passo. Os alfaiates, seleiros e sapateiros na rua que vem das Portas de S. Bento até as Portas do Carmo seguindo por detrás de Nossa Senhora da Ajuda e do Tijolo.”

São 13 atividades, espalhadas pelos dois níveis da cidade, em que se percebe a densidade do comércio da Cidade Baixa, morada dos grandes homens de negócio, pela sua ocupação com depósitos e trapiches.

Na Cidade Alta, concentravam-se mais os ofícios que emprestavam seus nomes às ruas. A organização dos artífices por arruamento teve prosseguimento pelo século XIX, pelo menos na zona comercial da Cidade Baixa, como bem descreve Katia Mattoso: “Muitas ruas e pracinhas do bairro eram conhecidas pelos nomes desses ofícios humildes: rua do ‘Peso do Fumo’, rua ‘das Grades de Ferro’, praça ‘dos Toneleiros’, praça ‘dos Barbeiros’, rua ‘dos caldeireiros’. Ainda hoje, embora todos esses nomes tenham desaparecido, velhos baianos ainda se lembram da época em que podiam evocar, naquele trecho da cidade, todo um mundo antigo de trabalhadores que se misturavam, e aos quais seria preciso acrescentar os vendedores ambulantes e os verdureiros, sem esquecer os ‘escravos dos cantos’.

Desse costume ficaram as ruas dos Algibebes, como eram chamados os vendedores de tecidos baratos e dos Ourives, dos artífices em metais preciosos.


Rua dos Algibebes no bairro do Comércio

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Para saber mais

SOUSA, A. R. História Política e Administrativa da Cidade do Salvador. Salvador: PMS, 1949.

CARITA, H. Lisboa Manuelina e a formação da Época Moderna (1495-1521). Lisboa: Livros Horizonte, 1999.

MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: as transformações em Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo), UFBA, 2011.

MATTOSO, K. M de Q. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo; HUCITEC; Salvador: SMEC, 1978.