Gina Marocci

Como Salvador colonial matava a sede (e as confusões que isso dava)

Fonte do Gravatá
Fonte do Gravatá - Foto: Paul R. Burley/Wikimedia

As discussões sobre o saneamento básico estão se tornando frequentes no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais de todo o Brasil, mas será que sabemos exatamente o que ele é?

Todos nós sentimos o transtorno que é a falta de água, ou quando moramos num bairro sem drenagem da água de chuva e com o esgoto a céu aberto. E quando não tem coleta de lixo na rua? Que sufoco! Pois bem, saneamento básico engloba tudo isso e um pouco mais.

Por definição, saneamento básico “é o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais.”

Com essa definição, nós já podemos perceber que a situação do saneamento básico nas cidades brasileiras é bem grave. É um problemão! Na verdade, ele é uma herança de longa data, e tem sua origem na cidade colonial. Ele é requisito fundamental à saúde pública, ou seja, à salubridade.

Comecemos, então, pelo abastecimento de água no período colonial. Mas, antes, vamos entender a diferença entre fontes e chafarizes antigos.

As fontes eram construídas para captação da água que aflorava em encostas, morros, pontos mais elevados. Elas tinham, geralmente, um frontão, onde se instalava a bica, e uma bacia, para armazenar água. Os chafarizes foram construídos em alvenaria ou em ferro para receber água tratada, potável.

As fontes eram uma constante preocupação da Câmara, sendo que em Salvador, apesar do grande número de mananciais, o problema de abastecimento era grave.

Duas razões existiam para esse agravamento: a primeira, era a qualidade das águas; a segunda, o fato de que muitas fontes ficavam em terras de particulares, o que obrigava a vereança a exigir o acesso da população a esses minadouros.

Quem possuía escravos, os encarregava do serviço de abastecer a casa ou os explorava como vendedores de água para ficar com a maior parte do valor recebido. Os escravos aguadeiros também utilizavam os animais de carga para transportar toneis de até 80 litros. Nas edificações, a água era reservada em tanques, talhas e moringas.


Escravo carregando água em pote 

São inúmeros os casos de obstrução ao acesso de fontes feitas por particulares.

Nas Atas da Câmara estão registradas essas situações de conflito. Em 1707, numa vistoria realizada na fonte das Pedras, verificou-se a intenção do proprietário das terras, onde se encontrava a fonte, de impedir sua utilização. Recorreu, então, à Câmara, determinando que a fonte deveria ser mantida livre ao acesso da população, ficando livre, também, o caminho ao redor do dique, do lado do qual ficava a fonte.

Chegava-se ao absurdo de desviar o curso de um rio, represando suas águas para proveito particular, ou mesmo tentou-se cercar o campo do Desterro, em 1709, cujas terras desciam até o dique, para impedir que o povo ali passasse para lavar roupa. Nos dois casos, os oficiais da Câmara decidiram embargar as ações dos particulares.

Para atenuar o problema de abastecimento de água da cidade, o Senado promovia reparos esporádicos nessas fontes. Mas parece ter sido bastante difícil realizar um trabalho sistemático à medida que, tudo indica, não se podia contar com muitos cidadãos colaboradores. Então, ficava o Senado sempre em débito com a cidade, mudando-se os seus componentes sem serem resolvidos os problemas. Por conta disso, em 1716, o Vice-Rei Marquês de Angeja, proibiu os oficiais do Senado de deixar seus cargos sem concluir os consertos de todas as fontes da cidade, dentro e fora dos muros.

Era costume das escravas ganhadeiras lavar roupas nas fontes, no entanto, a Postura 47, de 1716, tentava organizar o uso das fontes e proibia a lavagem de roupa debaixo das bicas, “porém sendo a necessidade muita e a roupa pouca, o poderá fazer tomando porém água em uma vasilha, levá-la cinqüenta palmos arredada da dita bica, de sorte que não receba o povo prejuízo na água que vai buscar para beber, por causa da dita água.”

A orientação para o uso das fontes era necessária por causa da dificuldade de acesso à água e o prejuízo que se poderia ter com a sua contaminação. Muitas fontes ficavam obstruídas pelo lixo acumulado em suas bacias, o que poderia provocar sérios problemas de saúde aos seus usuários.

Com o crescimento da cidade, e a contaminação de muitas fontes que a abasteciam, buscava-se água em rios e lagoas mais distantes. Esta situação se agravava em períodos mais quentes e novas fontes e chafarizes eram instalados sem, contudo, atender a demanda da cidade, que iniciara o século XIX sem qualquer avanço para a solução do problema. O que só iria acontecer na década de 1850, no Segundo Reinado, quando Salvador já tinha mais de 60 mil habitantes.

Em 1852, por meio da Lei Provincial nº 451, foi criada a Companhia de Águas do Queimado, que se instalou na antiga Fazenda Santo Antônio do Queimado, hoje Queimadinho. O objetivo da Companhia era a implantação de um serviço de água potável canalizada para a Cidade, e para isso, construiu-se uma represa no local, e foram instalados chafarizes em diversas praças da cidade para a distribuição de água.


Instalações da Companhia do Queimado (Guilherme Gaensly, c. 1880).

Como o nosso tema é muito vasto, continuaremos na próxima semana conversando sobre salubridade, mas como o foco no esgotamento sanitário.

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Para saber mais

SAMPAIO, C. N. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

VILHENA, L. dos S. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, v. 1, 1969.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Centro de Estudos da Arquitetura na Bahia. Evolução Física de Salvador: 1549 a 1800. Salvador: Pallotti, 1998.