Cassiano Antico

O Anel de Giges e as muitas perguntas sem respostas


Foto: Domonique Davenport/Unsplash/Creative Commons

 
Farsa contínua! A minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa a ser levada por todos.
-- Arthur Rimbaud

O Anel de Giges é uma história que está nos Livros II e III de “A República”, de Platão. Trata-se de um diálogo entre Glauco e Sócrates, em que refletem sobre a justiça e a injustiça. Para apresentar a ideia, contam uma "história".

Resumindo. Giges viu um cavalo de bronze oco, e pelas aberturas pôde ver um cadáver em seu interior, um homem com um anel de ouro na mão. Pegou então o anel e saiu.

Quando Giges foi até o rei, com os demais pastores, com o anel, ao girá-lo, ficou invisível. Girando para o outro lado, ficou visível. Usando esse poder, passou-se por um dos delegados que iam juntamente com o rei, seduziu sua mulher e matou o monarca, tomando seu poder.

Glauco pretende mostrar para Sócrates que a justiça e a injustiça caminham sempre juntas. Além disso, reflete sobre como ambas agem diante dos impulsos causados pela paixão. 

A narrativa exposta por Glauco é intrigante e pode levantar muitos questionamentos. Quando somos justos, será que estamos agindo por vontade própria, ou somente conforme somos conduzidos a agir para preservar uma imagem? Seria a justiça uma hipocrisia? A natureza do ser humano é justa ou injusta? Você já falou mal de alguém pelas costas e o elogiou na frente dos outros? Você já foi um pequeno canalha assim? Você já difamou alguém? Como o homem age quando há diante de si, a oportunidade de obter algum tipo de vantagem?

Todas aquelas questões me atormentavam. E como atormentavam. Como encontrar pureza em tudo que é corrompido?

Sabia que não havia uma resposta simples. Diante do gigante muro da impotência humana decidi me calar e calar Giges e calar Sócrates (que nunca escreveu um palavra) e calar Glauco e calar Platão e tapar a boca do pastor com um "soco".

Fechei o livro. Porque nada disso ia servir, ser útil.

"Longe da cidade grande / Quando um homem não pode ser livre de todos os males nesta cidade e de si mesmo e daqueles ao redor / Oh, e eu acho que eu não sei" (Lou Reed - Heroin). 

Tinha visto sujeito cheio de razão fazer cada barbaridade. Roubar, subornar, humilhar, trair, comprar juízes, vender a mãe, etc... E ser condecorado! "Deus acima de todos".  E um rebanho cruel batendo palmas diante da tortura e do sangue inocente derramado.

Todo mundo quer sair bem na fita, né? Cambada de "artista".

A boa e velha crueldade humana. O correto seria confiar nos meus próprios sentidos, os mais puros; antes de me borrarem, de me intoxicarem com tanta maldade. Quando as bocas falavam, observava quem falava. Quem estava ali dentro daquela carcaça ambulante e metida a esperta. Dava até pra sentir o cheiro da raiva, da mentira -  como um peido.

E como um cão, decidi  confiar na primeira impressão. Raramente falhava. Mas diferentemente dos cães: não latia... Era como se eu pudesse ver um mundo dentro de outro. Essa resignação para com a minha condição poderia ser a chave para compreender que minha alma não pertencia a este lugar. Ficando quieto, quase escutava o meu coração...

O coração de minha filha, a ternura, o bem que não compactua com o mal, o bem que nem conhece o mal; o que eu tinha sido um dia antes de colocar o anel de Giges no dedo: a sina de todo mortal...

Sentia uma paz indescritível. A certeza de nossa breve existência. E uma vontade de (me) perdoar. De perdoar até o carrasco, o Giges, o pensador, o juiz, a criança, o pecador, o santo: que habitam minha carcaça.