Câmara de Vereadores de Salvador - Foto: Wikimedia
Na época do Brasil colônia, a administração das vilas e cidades ficava a cargo do Senado da Câmara, composto por vereadores eleitos nas oitavas do Natal (semana entre o Natal e o ano novo), escolhidos entre os chamados homens bons, especificamente ricos fazendeiros e grandes negociantes. Eles exerciam os cargos de juízes, almotacés, tesoureiros, procurador e outros.
Havia, nas cidades e vilas mais importantes, um engenheiro militar, o arquiteto do lugar, responsável pelos principais projetos. A atividade de arruador era exercida por ele, que tinha o dever de medir e demarcar os alinhamentos das futuras ruas.
Detalhe do trabalho de arruamento do Caderno de Geometria do engenheiro militar
Como instrumentos de ação, a Câmara tinha em suas mãos, a legislação local e a concessão de terras. As posturas representavam a lei local, porém, nem todas as câmaras as formulavam.
Em Salvador, os registros mais antigos de posturas datam de 1690, e correspondem ao Livro de Registro de Posturas número 1.
Algumas posturas ficaram apenas no papel, e muitas delas eram desrespeitadas. Os Livros de Registro de Posturas de Salvador fazem parte do acervo do Arquivo Histórico Municipal de Salvador. Eles revelam as linhas de ação da Câmara e apontam as principais questões urbanas que exigiam algum tipo de interferência concreta sobre a cidade.
Pelo menos nos dois primeiros séculos, as posturas foram criadas para resolver situações emergentes e não denotavam maiores preocupações urbanísticas, apenas aspectos gerais, do dia a dia, como abastecimento de água, taxação de alimentos e prestação de serviços e limpeza das ruas, são os temas que se repetem.
Por meio das posturas, a Câmara de Salvador tentava orientar a vida econômica, política, administrativa e moral da cidade. Instrumentos de coerção e punição, nelas eram previstas multas para os infratores, das quais, se a infração fosse denunciada por alguém, essa pessoa poderia receber a terça parte do valor estipulado.
Com o adensamento da cidade no século XVIII, houve um interesse crescente pela manutenção das ruas, dos caminhos e estradas, calçadas e pontes, denotando preocupação quanto à comunicação entre bairros e, também, com as áreas mais afastadas. No entanto, a Câmara amargava uma crônica falta de recursos por conta das obrigações a cumprir como os gastos com festas religiosas, as contribuições para o pagamento de dotes em casamentos reais e outros impostos.
Agravava-se mais a situação por causa dos pedidos de empréstimo solicitados pela Coroa e pelos seus representantes, os quais, raramente eram pagos na totalidade.
Oficias da Câmara para proclamação municipal, Jean Baptiste Debret
Apesar dos belos sobrados e ricas igrejas, a cidade apresentava sérios problemas de infraestrutura como o lastimável o estado das ladeiras que serviam de ligação entre os dois níveis da cidade: Preguiça, Conceição, Misericórdia, Taboão, Pilar, Água de Meninos e Canto da Cruz.
Eram sete ladeiras, todas escorregadias e malconservadas, que possibilitavam o acesso de pedestres e carroças com muita dificuldade. Era comum as pessoas presenciarem os negros escravos carregados de mercadorias, subindo as ladeiras como animais de carga, muitos adquirindo, depois de dezenas de anos nessa atividade, defeitos físicos que os deixavam imprestáveis para exercer qualquer serviço. Geralmente quando isto ocorria, os senhores os abandonavam à sorte, muitos vivendo da mendicância.
A importância crescente dos alinhamentos das ruas, a tentativa de resolução de conflitos entre moradores devido ao fechamento de ruas por algum proprietário, vão dando outra conotação à apropriação da rua como espaço de uso de todos.
Dentro da cidade, ou melhor, nas áreas onde se condensara o assentamento, constantemente a vereação era convocada a resolver problemas de limites de terrenos, ora alguns proprietários invadindo áreas de outros particulares, ora particulares aglutinando aos seus limites trechos urbanos considerados de utilidade pública.
Eram fontes, caminhos e becos que, utilizados pela população constantemente, tornavam-se, de uma hora para outra, reclamados por hábeis e desonestos moradores que em seu individualismo provocavam o prejuízo aos mais necessitados.
Na execução das obras era empregada a mão de obra escrava, nos serviços mais pesados, como serventes e pedreiros, enquanto que um mestre orientava todo o serviço, ficando a fiscalização a cargo da Câmara. As obras eram realizadas por arrematação, o mesmo processo de uma concorrência, vencendo quem apresentasse o menor preço. A crônica falta de verbas fazia as obras se arrastarem de gestão em gestão, produzindo desavenças entre o Senado e o Governo-Geral.
Constantemente corria terra em algum ponto da encosta deixando sempre temerosa a população. Próximo à encosta (entre o Terreiro de Tesus e o Sodré) a ocupação se desenvolveu rapidamente, construindo-se armazéns e casas de negócios, na cidade baixa, e residências na cidade alta.
Preocupava às autoridades a possibilidade de acontecer um desastre de grandes proporções sobre as ruas da área comercial, de conhecido movimento. Porém, em 1721, após muita chuva, a terra correu sobre o casario da Preguiça e da Conceição. Acorreu de imediato a Câmara, executando obras de reparo para a contenção das terras, mas em 1732 um novo acidente aconteceu, tendo como resultado a morte de sete pessoas.
A Câmara atuava mais como órgão legislador, fiscalizador e punitivo, deixando aos particulares, os encargos da maioria dos serviços. O calçamento das ruas, quando não era realizado por particulares, ficava sempre à mercê dos parcos recursos municipais. Enfrentava a vereança a insubordinação da população contra as posturas, na maioria das vezes totalmente desrespeitadas.
Além da precariedade do calçamento, as ruas eram estreitas e mal alinhadas, pois o descumprimento do alinhamento era uma prática comum à população.
Era proibida a construção de casas, sacadas balcões ou poiais (bancos fixos de madeira ou de outro material colocados nas fachadas das casas) sem licença do Senado da Câmara, sendo a obra irregular demolida à custa do proprietário.
Essa postura aparece em 1696 e é complementada a partir de 1710 com a observação de que, mesmo a obra estando coberta com telhas, seria demolida pelo Senado, sendo que a maior intenção da Câmara era a de tentar organizar os alinhamentos, evitando-se, assim, as torturas das ruas.
Comprova-se, nessa repetição e ampliação do alcance da postura, que devia ser muito comum acontecer uma construção irregular, como também que a fiscalização não deveria ser tão frequente, ou mesmo, eficaz.
As ruas representavam elementos de ligação, de acesso aos locais sagrados. E essas vias tornavam-se privilegiadas, porque levavam aos pontos altos e mais valorizados para a passagem de cortejos e procissões. São essas ruas que vão receber o calçamento em primeiro lugar, e vão ter os símbolos litúrgicos como os passos, nas capelas que marcam as estações da Via Sacra, cruzes e oratórios.
Por não haver normas precisas para a lei civil sobre a organização de cidades, a legislação canônica, ao lado das práticas baseadas na tradição e nos costumes, assumiu a organização da vida urbana.
As cidades funcionavam a depender das horas canônicas e mantinham suas principais festividades vinculadas ao calendário litúrgico. Isso representa a estreita ligação entre Estado e Igreja, que marcou a vida colonial e interferindo, de maneira bastante direta, no seu cotidiano.
Percebe-se, então, que a principal e mais marcante influência urbanística das leis gerais, na colonização portuguesa, seria o assentamento dos principais edifícios representantes das duas esferas de poder, civil e religiosa, porque eles se tornavam vetores de expansão dos núcleos, fato visível em Salvador.