Cassiano Antico

É possível vencer aquela que é a pior de todas as mortes (eu sei)


Foto: Pixabay/Creative Commons

 
A alma é um olho sem pálpebra
-- Victor Hugo

Sabe aquela sensação de que te enfiaram num filme de terror, você está sozinho, não sabe onde seus pais estão e até acha que eles te abandonaram de vez?

Angústia, pânico, desespero e lágrimas!

Bom, essa é apenas uma ilustração para começar a imaginar o que deve ter passado na cabeça de Billy Hayes, nosso protagonista, preso na Turquia em 1970 por contrabando de haxixe.

A história é conhecida por muitos, com direito a filme ganhador do Oscar.

O livro que li nessa semana. "Expresso da Meia-Noite” (Editora Vestígio, 2016) é o relato visceral e escancarado da passagem do jovem americano William ‘Billy’ Hayes, na época com seus vinte e poucos anos, por algumas prisões na Turquia, entre 1970 e 1975, ano de sua fuga. Preso no aeroporto de Istambul.

E quer saber sobre maconheiro? Maconheiro não faz mal pra ninguém. Maconheiro fica lento e com a boca seca, pede um copo d'água, e fala "por faavooor" bem devagar, letargicamente. Sujeito emaconhado fica com fome.

Talvez você se pergunte: por que diabos  esse cara está falando do "Expresso da Meia-Noite" na coluna Papo de Pai? Não tinha nada mais leve não? Não, não tinha nada mais leve. E escrevo sobre isso porque sou um leitor contumaz, um ex-dependente químico; hoje é meu aniversário e não posso comemorar com meus amigos no bar por causa da pandemia.

Certas coisas nos marcam a alma como ferro em brasa marca gado.

A prisão em que Billy ficou trancado e que teve que escapar foi a mesma que eu construi - só que dentro de mim, nos porões de minha alma, com carrascos horríveis e extremamente cruéis.

Nossa mente pode ser um lugar perigoso. No entanto, em situações precárias ou quando nos sentimos vulneráveis e pressionados, algo parece impulsionar nossa criatividade e nossa determinação.

Resistência é o termo comumente utilizado para caracterizar a capacidade de superar obstáculos e adversidades em contextos de forte tensão e perturbação. O importante é o quanto de porrada você é capaz de suportar.  Assim é a vida.

A obstinação de Billy em escapar da prisão desde o início é admirável. Desconfiado e decepcionado com a justiça turca, a fuga se torna a única opção viável para ele, a única forma de se manter lúcido e vivo.

O contexto político e as relações entre os Estados Unidos e a Turquia são elementos importantes no enredo e, de certa forma, influenciam suas decisões. "Fazia cinco anos que eu tinha me metido nessa. Fazia cinco anos que eu esperava minha família, meus amigos, meus advogados, me tirarem dessa. Eu tinha vinte e oito anos. Talvez fosse hora de resolver tudo com minhas próprias mãos. Chegou a hora – falei ao ar matinal. – chegou a hora.” 

Quando resolvi abandonar a cocaína foi assim também. "Chegou a hora."  Eu estava morrendo a olhos vistos. Eu era motivo de pena e de chacota. Era a droga ou eu - bem assim. O impossível era o meu dever naquele momento crucial de minha existência. Minha vida era minha e eu não podia deixar que ela fosse esmagada por uma substância ou por minha completa submissão e covardia.

Vi muita coisa no mundo. Há pessoas que têm uma biblioteca como os eunucos um harém. Há "paisanas travestidos de drogados".  Há os que arrumam culpados para tudo. Há de tudo. Existem aqueles vivem muitas vidas sem escrever uma única página, linha, palavra... Pessoas que são a própria poesia.

Existem os livros que nos levam para além dos livros, como diria o filósofo.

Conheci algumas almas nobres.  A vida não segue em linha reta e com a coerência de uma redação de vestibular ou um TCC universitário. Só o morto fica parado, educado, de boca fechada, sem reclamar.

Percebi que tinha que escapar da prisão que eu mesmo construí... inventar novos caminhos. Tinha luz lá fora. Não era muita, mas dava para vencer a escuridão da minha alma.

Eu estava atento, como um pai que carrega a filha recém-nascida nos braços. E eu ainda seria abençoado com duas lindas meninas. O destino iria me presentear com muito mais.

Claro que nunca poderei vencer a morte. Mas posso vencer a morte em vida - que é a pior de todas as mortes.