Não tenho tido tempo para me lamentar. Quem é pai de duas filhas pequenas deve saber o que quero dizer. Quero dizer que não posso me esconder no quarto escuro. Que é para onde vão os covardes e os que desistem de tudo. Não tenho tido tempo nem para me lamentar.
Sou Gregor Samsa, o sujeito que acorda de sonhos intranquilos e mesmo metamorfoseado num inseto monstruoso, pula da cama e chama a vida no peito. E a vida tem mãos quentes e bebe luz do sol e ri pra mim.
A vida precisa de mim e me quer de pé. Não, a vida não é para ser entendida, interpretada, mas vivida: minhas filhas. Eu me rendi, como Clarice Lispector: "Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."
Já não pavimento o abismo e nem pulo lá de cima sem paraquedas com o diabo do meu lado. Tenho portado até carteirinha de bunda-mole, olho pros lados antes de atravessar a rua. Tem até isso, né?
Tenho cantado parabéns e ficado grato por mais um dia de vida. Tenho recebido cartas e desenhos de crianças e me emociono todo dia.Tenho sido o Guardador de Rebanhos, o Dom Quixote e o São Sebastião - sempre aguento mais uma flecha. Meu corpo suporta mais dor do que eu jamais imaginei. Meu alvo é a estrela inatingível, essa é a minha busca.
Eu que sempre fiquei buscando uma luz azul na lama, que fui o caminhante do fio da navalha, o rei de uma vida extremada e louca - tenho me pegado regando religiosamente as plantas do nosso jardim. Tenho rezado! Aliás, tenho rezado por todos nós... Só pra contrariar a minha natureza egoísta e mesquinha. Não tenho tirado selfies.
Olho pra fora... e tenho me visto pequeno, frágil e vulnerável. Estranhamente humano. Tenho estado "lúcido como se estivesse para morrer". Porque não tenho mais nenhuma filosofia, tenho apenas sentidos.