O amor é de graça. A identidade de uma criança deve ser forjada pelo que ela é - um ser único neste mundo e não uma medida do que está faltando nos pais. Criança não é troféu e nem chaveiro. Criança é aquilo que deixamos morrer ao longo dos anos: a nossa melhor parte.
Há alguns dias adotamos uma cachorrinha que sobreviveu a um atropelamento e a inúmeros maus tratos; a cadela possui marcas de queimaduras pelo corpo, marcas de cigarros. Que ser humano é capaz de fazer algo assim com um animal tão decente? Aliás: somente o ser humano é capaz de tamanha crueldade.
Ela chegou em casa com o rabo entre as pernas porque é a mensagem que ficou de sua convivência com as pessoas. Minhas filhas a receberam com todo o carinho do mundo. Isadora a batizou de Amorinha. Depois de algumas horas com as meninas, Amorinha já havia tirado o rabo das pernas e o balançava, como se estivesse sorrindo.
Dias antes, Dodó ouviu uma conversa de adultos, e estava quieta demais. Me perguntou com os olhos mais puros do mundo: "Papai, se um dia você for embora, promete que não vai esquecer de mim?". Dodó tem 4 anos.
As pessoas olham o Instagram, as redes sociais e imaginam que a vida é um sorriso congelado; um passarinho voando feliz; um picolé que não derrete; tudo cor-de-rosa. Dobrei meus joelhos e abracei minha filha e nem sei se consegui disfarçar o meu choro. Já não quero disfarçar coisa nenhuma.
Cansei! Depois de um tempo, entendi as palavras que importam. E que as pessoas e as ações importam muito mais.
Em pouco tempo eu era o lobo caçando minhas pequenas presas pela casa. A alegria morava no nosso lar. E, dias depois, fui com a Ju buscar nossas filhas no colégio e levamos Amorinha de surpresa. As meninas trouxeram todas as coleguinhas para conhecer a nova integrante da família.
O olhar da cachorrinha é igual ao de minha filha de 4 anos. Irradia bondade, luz e esperança. No caminho de volta, todos nós juntos, Dodó disse: "Nossa família toda juntinho, e nossa família ficou maior. Maior que a calçada, maior que a rua. Maior que o céu".
Ju e eu ficamos emocionados com o poder curativo do amor. Do amor de uma vira-lata que a vida espancou, queimou, e ela devolveu com amor. Tenho muito a aprender com os cães e com as crianças.
Claro que observo a hipocrisia, a que define uma óbvia falha de caráter visto que tem como única intenção a obtenção de vantagem, seja ela financeira, de status ou qualquer coisa assim. Vale lembrar que quem mantém o "ator", o sujeito hipócrita é a plateia que aplaude. Ambos entusiastas da farsa, mesmo afirmando ser praticantes da verdade.
Jogo fora a filosofia e tanta porcaria, respiro. Sei quem sou. Quantas "pessoas", além das crianças e dos cães fazem você se sentir raro, puro e até mesmo especial de verdade? Quantas?
Sofro com as milhares de mortes e vidas desoladas. E caminhando com minhas filhas, minha companheira e Amorinha, observo o óbvio: aqueles que nós resgatamos, são, na realidade, os que nos salvam do nosso egoísmo - os que nos resgatam.