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Eu tinha acabado de sair do restaurante. Estava sozinho e bem alimentado. Vi uma garrafa pet jogada na calçada e resolvi pegá-la para jogar na lixeira mais próxima. Assim que jogo, ouço um grito e alguém tocando minhas costas: "Parabéns pela sua atitude, meu irmão. Se todos fizessem isso, não haveria enchentes, alagamentos. Mas essa garrafa que você acabou de jogar no lixo era o meu ganha pão".
Fiquei ouvindo. Ele veio para perto e quis apertar a minha mão. Suas mãos estavam muito sujas, mas eu apertei com firmeza. Olhei-o nos olhos.
E seus olhos me mostraram tudo. Senti culpa, vergonha da nossa raça e vontade de chorar. Ele estava todo, todo sujo, usava um cobertor cinza que o cobria até a cabeça. O rosto magro e os pés descalços estavam encardidos. Não tinha mais que 12 anos de vida. Pelo jeito que articulava as idéias, os assuntos, já que começou a emendar um no outro, que nem Neal Cassady fazia - percebia-se que tinha algum nível de escolaridade. Naquele mesmo jeito de te prender a atenção, sabe?
Disse que a policia havia matado seus amigos que estavam dormindo na Praça da Sé - amigos que nunca fizeram mal a ninguém, crianças inclusive; ele me disse que tinha medo de policia, que estava farto de gente que dava esmola pra se sentir melhor que gente como ele (falou isso de um jeito tão bonito e pungente que eu jamais serei capaz de reproduzir, de traduzir); disse que alguns davam comida podre, que ele passava mal depois, que isso dava bicho na barriga das crianças. Falou que tem sujeira demais no mundo.
A gente foi descendo a rua e, de repente, ele tirou o cobertor da cabeça. Vi que tinha cabelos curtos e então ele falou: "Irmão que é irmão não deixa irmão ficar com fome".
A gente estava num local ermo, pensei bobagem "e se ele tiver uma faca?" - num primeiro momento -, mas decidi ouvir o meu coração. Abri a carteira, no meio da rua, dei uma grana pra ele. Coisas que fazemos para aliviar a nossa consciência. E não alivia.
É assim que nos tornamos conscientes, e é por uma sequência de constatações sucessivas de nós mesmos que a vida nos corrige. Um criminoso e um inocente podem, então, ser colegas de quarto das nossas dolorosas crises existências? Lembrei das imagens da mansão do político corrupto. A ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem.
Ainda com a carteira aberta, ele me disse: "Guarda, irmão. É perigoso mostrar essas coisas na rua. E muito obrigado. Que Nossa Senhora, São Jorge Guerreiro e Jesus Cristo: te acompanhe". Foi a nossa despedida.
Eu tive que passar no supermercado antes de voltar para casa, e aquilo me acompanhou. Aquilo me acompanha agora enquanto escrevo. Lembrei-me de lavar as mãos. E ao fazê-lo: senti-me sujo.
Recordei-me da sujeira que ele me falou. Da sujeira que existe no mundo. Que existe em mim. E que ele conhece melhor que qualquer um... Os olhares de desprezo e de indiferença que recebe diariamente, a comida podre, o medo, a cama de papelão, o abandono, o frio no corpo e o gelo nos abismos da alma.
Ele é uma criança. E quanto mais lavava as mãos, mais sujo eu me sentia. Minhas mãos já não estavam sujas. Ia pegar minha filha, queria estar limpo para ela. E estava. Mas a sensação interior era outra, é outra.
Essa criança não sextou, não sabadou, não domingou. Ninguém sabe que ela existe. E quando os carros passam, os vidros escuros são fechados para que pareçam meros espectros. Quem, nesta terra, é capaz de ser feliz com um irmão sofrendo do lado?